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segunda-feira, 8 de março de 2010

A TODAS AS MULHERES QUE SOFREM...



AQUI JAZ A LEBRE…


Naquela manhã, o Sol rasgou uma nuvem e apareceu fulgurante, espreitando por entre farrapos brancos.
Estava-se na Primavera.

No bairro de lata, dourado por esse Sol, todos dormiam ainda, excepto Maria: mulher negra, roliça, de olhos negros, belos e melancólicos.

Maria quase não dorme. O homem branco, deitado a seu lado, ressona como as roncas que em noites tenebrosas alertam os pescadores para os perigos do mar.

Maria trabalha. Faz limpezas nos prédios da cidade luminosa, que se vê da sua barraca. O homem não. Não trabalha. Não porque não tivesse onde trabalhar, mas simplesmente porque é parasita profissional. Há homens assim. Vivem como as pulgas, sugando o sangue dos corpos desprevenidos.

Maria casou com aquele homem branco, porque ele era bonito, cheiroso, galanteador. Trazia-lhe flores (que roubava, soube-o mais tarde, às floristas das ruas). Maria deixou-se seduzir. Como evitá-lo? Nunca um homem da sua cor lhe oferecera flores. Como eram belas, as flores, e bonito, o homem branco.

Contudo, em breve, Maria apercebeu-se de que tais atributos não bastam num homem, para fazer uma mulher feliz.

E como era infeliz, a Maria!

Um dia, cansada da beleza, do cheiro e dos galanteios do homem branco, e das flores roubadas que ele lhe oferecia, Maria disse-lhe que ia deixá-lo. As suas palavras soaram como trovões, pelos ouvidos do homem branco. Se o deixasse matava-a, fosse ela para onde fosse, estivesse ela onde estivesse. Ele encontrá-la-ia, podia ter a certeza.

Maria amedrontou-se e não partiu. Resignou-se com o seu destino. Afinal aquele era o seu marido, a pulga que ela não conseguia repelir do seu corpo.

E os anos foram passando, inalteráveis. O homem branco ressonando toda a noite, depois de um dia passado na taberna, a beber e a jogar. E Maria trabalhando, na cidade. Arrastando-se pela vida, olhando o mundo à sua volta, com os seus belos olhos negros e melancólicos.

Naquela manhã, em que o Sol rasgou uma nuvem e apareceu fulgurante, espreitando por entre farrapos brancos, Maria decidiu ficar viúva. Na condição de viúva, poderia viver, finalmente. Enquanto o homem branco roncava, Maria trespassou-lhe o coração com uma faca de cozinha. Não friamente. As suas lágrimas misturaram-se com o sangue que escorria do corpo do homem branco, deitado sobre os lençóis, que Maria fazia questão de estarem sempre imaculadamente brancos também.

Aqui jaz a lebre, disse então Maria, sem ódio, apiedada, apesar de tudo, olhando o corpo sem vida daquele que durante anos lhe sugou o sangue, como uma pulga.

O que fazer agora com Maria?
Condená-la?
Perdoá-la?
O que fazer agora com Maria?...

in «Os Dias de José... – E Outras Narrativas»,© Josefina Maller (a aguardar publicação)

Ilustração: Escrava negra, por Alberto Henschel, em 1970

2 comentários:

  1. Obrigada, efe. Lamento que os editores apesar de considerarem este meu livro de pequenas narrativas com qualidade, não o queiram publicar, por não se enquadrar nas filosofias tal, tal, tal... que é o mesmo que dizer, não se enquadra na mediocridade que costumam publicar.

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