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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

terça-feira, 21 de setembro de 2010

QUANDO EU MORRER, AS ROSAS CONTINUARÃO A FLORIR…




Arrastou-se pela vida até ao derradeiro dia.


Viveu cada minuto da sua existência tão intensamente como se fosse o último. Tinha um jeito peculiar de contemplar o mundo. Via-o através de um olhar arrebatado, carregado de melancolia. Era uma criatura silenciosa, afável, solitária. Amava as árvores, as flores, particularmente as rosas, e os animais com um amor grande. Imensurável.

Amava, de igual modo, também as palavras, a causa maior de todas as suas mágoas, de todos os seus desencantos, de todas as suas frustrações, de todos os seus desencontros, de todos os seus desamores, porque a palavra da mulher não palpita, diziam-lhe os homens, seus ímpares na escrita que, na verdade, não sabem, nem nunca souberam coisa alguma acerca do universo da mulher, tão repleto de imponderáveis.

Por vezes, sentava-se num rochedo, à beira-mar e, embalada pelo sussurro das águas, escrevia versos, que lançava às ondas, para que estas os arrastassem até lonjuras inatingíveis. Versos que só a ela diziam respeito, e que com ninguém mais partilhava, à excepção do grande oceano.

Quando não se sentia inspirada, distraía-se a escutar o crocitar das gaivotas, que lhe contavam segredos do mar: lá no fundo, havia um mundo, e nesse mundo vivia um príncipe solitário, num palácio de vidro, onde o destino o mantinha prisioneiro, há séculos, esperando que uma bela donzela viesse libertá-lo. Poderia ser ela, essa donzela libertadora, se fosse bela, ou se soubesse como chegar a esse palácio submerso. Como não era bela e também nada sabia dessas profundezas, limitava-se a lançar às águas os seus sonhos, os seus versos e cantava baixinho enternecedoras melodias de amor, na esperança de que esses sonhos, esses versos e esses cânticos chegassem àquele mundo que havia lá no fundo, e pudesse libertar o príncipe solitário.

O seu quotidiano era feito de muitos pequenos nadas. Coisas que para os outros eram insignificantes, mas que para ela eram o cerne da sua existência. E em tudo o que fazia, as palavras estavam presentes. Palavras que diziam do bem, do bom e do belo que a vida encerra, e poucos eram os que sabiam desbravá-las. Tinha um sorriso afectuoso, que incorporava às palavras e distribuía pelas ruas como se de panfletos se tratasse.

Contudo, ninguém estava interessado nas suas palavras. No seu sorriso complacente. O mundo tornara-se um lugar de urgências, cheio de gente vazia e apressada, onde viver era caminhar para o nada, passo a passo.

Ela arrastava-se por esse mundo esvaziado, carregando todas as suas palavras às costas, não como se carregasse um fardo, mas como se transportasse o destino do próprio mundo.

Até que um dia, a melancolia que sempre a acompanhou, degenerou em tristeza, e a tristeza se não é aplacada, torna-se fatal.

Quando a encontraram em casa, sem vida, sentada na sua cadeira de verga, junto à roseira que guardou tantos dos seus segredos, entre as suas mãos jazia um caderninho de capa amarela, onde estavam escritas aquelas que foram as últimas palavras que deixou ao mundo, em jeito de despedida, e que, afinal, resumiam a sua ideia de eternidade: Quando eu morrer, as rosas continuarão a florir…

in «Os Dias de José... e outras narrativas» © Josefina Maller (a aguardar publicação)
Foto © Josefina.Maller

sexta-feira, 18 de junho de 2010

JOSÉ SARAMAGO PARTIU...



José Saramago morreu?


Era bom carácter? Mau carácter? Era ateu? Incomodava? Era comunista? Polémico?
O escritor morreria de verdade?

A Literatura Portuguesa perdeu o homem, mas ficou com a sua obra. Uma obra maior. Polémica? Certamente. Se não fosse polémica não seria maior. Lugares comuns não entram para a História, nem para a eternidade.

Saramago morreu? Não!

No mundo ficaram as suas palavras imortais, que o tornam imortal.

Saramago não morreu.

Partiu para uma outra dimensão da sua existência, deixando-nos a lembrança de um homem que nunca esteve bem com o mundo nem com uma humanidade tão desumana...


(Origem da imagem)
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjHwsCKtP_IXfAkVsbOGiOfzBgkidf5x5OatjCHeKxM5Zaf19Q3FGECCNkjarcC2eiV1HldLAwktGOh88V0NpGcFt7ValhOEK9_mCriSDHeyOvzLr5JJiJedgV5gghFcqeJUWv81GCHmeg/s400/jose_saramago01.jpg

sexta-feira, 9 de abril de 2010

CÂNTICO FINAL...



Chegara, finalmente aquele 17 de Outubro. O ano era o de 2009. Fazia uma daquelas magníficas tardes de Outono, em que o Sol dourava a folhagem, amarelecida, dos choupos, no jardim.


O silêncio era o de águas que corriam ali perto.

Eleutéria acabara de morrer.

Ouvi estas palavras serenamente. Afinal, Eleutéria tinha 100 anos. Murchara como uma uva passa. A sua doença limitava-se a ser o cansaço da vida. Quando se perde a força da juventude, viver torna-se um fardo. Dizia Eleutéria, frequentemente.

E tudo aconteceu como previra.

Tantas vezes passara pelo 17 de Outubro! Esse dia, era o dia do seu pressentimento. Dizia. Comemorava-o, como o dia da morte que havia de vir, tal como celebrava o dia do seu aniversário, a 27 de Maio. Nascera em 1909.

Um século de uma vida vivida como se estivesse permanentemente em cima de um palco: representando. Sim, representando várias Eleutérias. Sempre se sentira no lugar errado, rodeada das pessoas erradas, e fazendo as coisas erradas. Qual das que representava no palco da vida seria a verdadeira? Nem ela própria sabia.

Nunca conseguira dominar o seu destino. Tentou ser escritora. As palavras eram o seu sonho maior. Mas não a deixaram. Outros valores menores sempre se levantaram diante da sua obra (quase toda de intervenção, numa época em que a literatura de água com açúcar estava em voga). Talvez a indiferença que os editores votavam ao seu talento, lhe tivesse corroído a alma, e ela deixara-se abater como um tordo.

Antes de se sentar na sua cadeira de baloiço, de onde não sairia mais, a não ser para ir deitar-se, com ajuda, queimou todos os seus papéis, todos os seus manuscritos, todas as suas recordações, fotografias, para que não ficasse rasto do que foi. E até ela foi cremada, e as cinzas lançadas sobre o oceano, para que nada restasse da sua existência na Terra.

De Eleutéria resta apenas a recordação de uma mulher que teve o sonho de ser escritora e um sistema editorial caduco não permitiu.

E eu, que a conheci e cheguei a ler alguns dos seus escritos, posso afirmar que o mundo perdeu quem poderia ter sido uma das maiores autoras do século.

Como eu compreendia o seu desassossego!...

...

Voai cinzas de Eleutéria! Acompanhai a essência que se foi. Juntai-vos algures num paraíso que houver longe, para que Eleutéria renasça!

(Origem da imagem: Internet)