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quarta-feira, 31 de março de 2010

O VENTO UIVA NA SERRA...



O vento uiva na serra...


O que dirá o vento?


Vem, vento, vem...

Diz-me os teus segredos,

para que possa transformar-me em vento também,

e correr pelos campos

e sobrevoar o mar,

varrer as searas e as nuvens,

e lá do alto, ver o mundo com olhos de espanto...

Vem, vento, vem...

Traz-me a tua força

para que possa carregar o mundo para a outra margem,

lá, onde a luminosidade não cega,

onde as flores crescem selvagens,

e eu posso caminhar descalça...

Vem, vento, vem...

Deixa-me sentir a tua face inconstante,

leva-me daqui,

transporta-me para onde quiseres, como uma poeira...

O que sou senão poeira...?

Vem,

canta-me as tuas melodias,

deixa-me voar também...

quinta-feira, 25 de março de 2010

MELANCOLIA...



Depois de um jantar comemorativo de algo que não importa dizer, para o qual fui convidada, cheguei a casa bastante perturbada. Demasiado absorta. Alheada das coisas terrenas. Emudecida. Mais tarde, já recolhida, no silêncio do meu canto, partilhei com o meu Diário as emoções daquela noite.

...

20 de Maio de 1991


Subitamente os meus olhos encontraram outros olhos, que me olharam com uma estranha expressão, uma tão singular expressão que senti estar diante de algo transcendente e inexplicável.


Eram os teus olhos, meu amigo.


Durante todo aquele jantar, o teu olhar procurou o meu olhar, furtivamente. De vez em quando, dissimuladamente, esses teus olhos grandes e escuros, profundamente tristes, fixavam-me, e foi precisamente num desses momentos que senti estar a ser gravemente ferida. Era como se uma flecha rasgasse o meu peito, alojando-se, bem fundo, no coração. Senti então uma dor estranha, e uma inquietação e um rebuliço inexplicáveis...


À saída, novamente o teu olhar penetrante se cravou no meu olhar, e eu não consegui (embora tivesse tentado) desviar os meus olhos dos teus olhos, mesmo enquanto trocava palavras com outros convidados.


Algo de estranho se passou. Algo lancinante me feriu. E eu não mais fui a mesma, desde então.

in «ERA O MÊS DE MAIO...» (Ainda por publicar)

quarta-feira, 24 de março de 2010

AO (À) MISTERIOSO (A) VISITANTE DO «GALATEA E TRITON»

Este não é um blogue popular. A mim, que o concebi, não me interessa o mundo abaixo das nuvens. Não aqui.


Por isso, criei este cantinho para dizer das coisas etéreas.

Para deambular pelo espaço, por lugares inventados.

Contar histórias possíveis.

Partilhar o mundo de que gosto.

Ouvir um pouco das melodias que me transportam para paraísos que só eu sei.

O mundo abaixo das nuvens está um caos. E eu, que sou nefelibata e sigo a filosofia dos três Bês – o Bom, o Bem e o Belo – não me sinto bem nesse caos.

Gosto de vaguear por aí, por onde encontro as coisas que me interessam e fixo em fotos. Um dia, o que fotografo não existirá mais, mas eu talvez possa olhar para o que era o mundo abaixo das nuvens, através do que fixei, e quem sabe, até consiga sonhar...

Como comecei por dizer, este não é um blogue popular. Quase ninguém cá vem, para vaguear comigo...

Contudo existe um ou uma visitante fiel. Todos os dias, aparece. Silenciosamente. Nada diz. Não sei quem é.

Gostaria de saber, porém, para poder agradecer-lhe esta generosidade. Se não quer identificar-se em público, tem o meu e-mail.

Escreva-me e permita-me saber quem se interessa por visitar um lugar recôndito como este, onde nada interessa ao comum dos mortais.

Gostaria de partilhar algo peculiar com o meu ou a minha visitante especial.

Agradeço.

terça-feira, 16 de março de 2010

MONÓLOGO COM DEUS



Todo-poderoso Deus, quiseste tu que eu nascesse. Consentiste que eu vivesse. Deste-me um corpo, uma alma. Moldaste em mim uma natureza apaixonada, criadora, sensível. Concedeste-me o dom de raciocinar e discernir. Criaste no meu ser a emoção, os sentimentos. Fizeste-me, em suma, para amar.

Inventaste um mundo para nele eu viver. Imaginaste outros seres a mim semelhantes para que eu não me sentisse só. Ensinaste-me a lógica das coisas e da vida.

Foste tu que também inventaste o amor.

Tu, todo-poderoso Deus, senhor de todo o universo, criador do céu e da Terra! Tu que fizeste brotar as flores nos verdes prados e nas solitárias planícies e nas colinas e nos vales profundos, criaste também o Sol e as estrelas. Tu, todo-poderoso Deus, inventaste um paraíso terrestre para nele viver o homem, que fizeste à tua imagem. Foste também tu que me criaste a mim. Lembraste?... Sou uma das tuas criaturas. Inundaste-me de amor, de ternura, de carinho. Foste tu a luz do meu caminho!

Ó Deus! Como amo as coisas que criaste para mim! Como amo todos os teus seres! Como sinto a tua presença nos prados cobertos de florzinhas amarelas; na imponência das árvores; na suavidade do voo dos pássaros; na magia do mar, ou de um rio correndo por entre o arvoredo esquivo!

Ó todo-poderoso Deus, porque fizeste de mim uma sonhadora? Unindo os conhecimentos que de ti recebi ao que tu criaste para meu conforto, concluo que não podes condenar-me por buscar a felicidade. (Mas será a felicidade uma invenção tua, ou uma mentira do homem?) Onde posso eu encontrá-la?...

Não quiseste dar-me um companheiro que olhasse os lírios dos campos da parábola de Cristo, tal como eu os olho! Não consentiste que eu tivesse um amigo que compreendesse a natureza apaixonada que moldaste em mim! Não permitiste que nenhum homem me olhasse para além da mulher que sou! Não me julgaste merecedora de um amante que saciasse o corpo que me deste. Então porque puseste Horácio e Raimundo no meu caminho?...

Juliana

In «ERA O MÊS DE MAIO...», de Josefina Maller (ainda por publicar)

quinta-feira, 11 de março de 2010

SONATA EM FUGA...



Fujo do vento
que fustiga a minha melodia
ainda inacabada.

Fujo do tempo e
das madrugadas
do meu desencanto.

Fujo da cotovia
cujo canto enfeitiça
o meu querer.

Fujo das vozes
que no meu ser
gritam o desespero.

Fujo da noite
que me envolve em sonhos
impossíveis de sonhar.

Fujo de mim
morrendo lentamente
desde o dia em que deixei
o cálido ventre de minha mãe...

...

Ó vento, segue o teu rumo
e deixa-me a sós com a minha melodia!

Ó tempo, pára por um instante
e devolve-me as madrugadas que foram minhas!

Ó cotovia, liberta-me do teu canto
e quebra o feitiço que a ti me prende!

Ó vozes, parai de gritar
para que eu ouça apenas o meu silêncio!

Ó noite, adormece-me em ti
ou então deixa-me partir,
porque perdi o momento de existir
e preciso de voltar ao cálido ventre de minha mãe...

segunda-feira, 8 de março de 2010

A TODAS AS MULHERES QUE SOFREM...



AQUI JAZ A LEBRE…


Naquela manhã, o Sol rasgou uma nuvem e apareceu fulgurante, espreitando por entre farrapos brancos.
Estava-se na Primavera.

No bairro de lata, dourado por esse Sol, todos dormiam ainda, excepto Maria: mulher negra, roliça, de olhos negros, belos e melancólicos.

Maria quase não dorme. O homem branco, deitado a seu lado, ressona como as roncas que em noites tenebrosas alertam os pescadores para os perigos do mar.

Maria trabalha. Faz limpezas nos prédios da cidade luminosa, que se vê da sua barraca. O homem não. Não trabalha. Não porque não tivesse onde trabalhar, mas simplesmente porque é parasita profissional. Há homens assim. Vivem como as pulgas, sugando o sangue dos corpos desprevenidos.

Maria casou com aquele homem branco, porque ele era bonito, cheiroso, galanteador. Trazia-lhe flores (que roubava, soube-o mais tarde, às floristas das ruas). Maria deixou-se seduzir. Como evitá-lo? Nunca um homem da sua cor lhe oferecera flores. Como eram belas, as flores, e bonito, o homem branco.

Contudo, em breve, Maria apercebeu-se de que tais atributos não bastam num homem, para fazer uma mulher feliz.

E como era infeliz, a Maria!

Um dia, cansada da beleza, do cheiro e dos galanteios do homem branco, e das flores roubadas que ele lhe oferecia, Maria disse-lhe que ia deixá-lo. As suas palavras soaram como trovões, pelos ouvidos do homem branco. Se o deixasse matava-a, fosse ela para onde fosse, estivesse ela onde estivesse. Ele encontrá-la-ia, podia ter a certeza.

Maria amedrontou-se e não partiu. Resignou-se com o seu destino. Afinal aquele era o seu marido, a pulga que ela não conseguia repelir do seu corpo.

E os anos foram passando, inalteráveis. O homem branco ressonando toda a noite, depois de um dia passado na taberna, a beber e a jogar. E Maria trabalhando, na cidade. Arrastando-se pela vida, olhando o mundo à sua volta, com os seus belos olhos negros e melancólicos.

Naquela manhã, em que o Sol rasgou uma nuvem e apareceu fulgurante, espreitando por entre farrapos brancos, Maria decidiu ficar viúva. Na condição de viúva, poderia viver, finalmente. Enquanto o homem branco roncava, Maria trespassou-lhe o coração com uma faca de cozinha. Não friamente. As suas lágrimas misturaram-se com o sangue que escorria do corpo do homem branco, deitado sobre os lençóis, que Maria fazia questão de estarem sempre imaculadamente brancos também.

Aqui jaz a lebre, disse então Maria, sem ódio, apiedada, apesar de tudo, olhando o corpo sem vida daquele que durante anos lhe sugou o sangue, como uma pulga.

O que fazer agora com Maria?
Condená-la?
Perdoá-la?
O que fazer agora com Maria?...

in «Os Dias de José... – E Outras Narrativas»,© Josefina Maller (a aguardar publicação)

Ilustração: Escrava negra, por Alberto Henschel, em 1970

quinta-feira, 4 de março de 2010

O RIACHO...



Rajid era sensível como as asas de uma borboleta. Bravio, porém delicado como uma flor, quando era preciso.

Naquele dia, ao fim da tarde, atravessou a planície trotando cuidadosamente, para não magoar as ervinhas e as flores.

O Sol descia lentamente, em direcção às montanhas, entre as quais em breve se afundaria. Por enquanto, enternecia a paisagem, tornando-a levemente rosada, e mirava-se nas águas de um riacho que serpenteava, feliz, por entre as serras.

Rajid aproximou-se do vale e pode então contemplar de mais perto o riacho. Era o seu primeiro encontro com a fonte da vida.

Abeirou-se suavemente daquelas águas cantantes, que corriam sem pressa e onde a folhagem das margens se reflectiam, esboçando um outro bosque – o bosque aquático. O cavalo selvagem debruçou-se para nelas saciar a sua sede, e pelo interior do seu corpo deslizaram os delicados fios da luz do Sol.

Foi então que, pela primeira vez, Rajid viu reflectida a sua própria imagem naquele espelho natural. A sua silhueta ali estava: negra, bela, primorosamente esculpida.

Rajid sorriu para o riacho. E enfeitiçou-o com o seu sorriso. As águas tornaram-se mais límpidas e transparentes, e Rajid mirou-se nelas, longamente. Olhou o seu próprio olhar, numa tentativa de indagar o seu íntimo, e, em verdadeiro delírio, descobriu a essência do seu ser.

O riacho, enfeitiçado pela beleza negra de Rajid, fez cantar as suas águas mais baixinho, para não perturbar o êxtase do momento, e prolongou-o infinitamente...


in «História de um Cavalo Selvagem» © Josefina Maller (a aguardar publicação)

segunda-feira, 1 de março de 2010

DESENCANTO...



A noite veio e trouxe o silêncio…

As estrelas vieram e cintilaram no céu…

A Lua veio e iluminou os caminhos…

O vento veio e soprou de mansinho…

A chuva veio e humedeceu as campinas…

As aves vieram e cantaram baixinho…


Vieram depois os sonhos, os medos, os segredos…

Vieram até os anjos de uma corte celeste…


Só tu não vieste…