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quinta-feira, 27 de maio de 2010

TUDO O QUE TENTAVA DIZER ERA VERSO…



Enquanto impetuosamente, o vento açoitava a noite, estranhamente, a flor que eu plantara no meu jardim, nessa manhã, esmorecia…


Isto foi o que ela começou a escrever no seu bloco de notas, sentada à mesa do canto, do Café Nicola, o mais antigo da cidade, um café com história, o café de eleição do poeta Bocage, o qual tudo o que tentava dizer era verso (1).

Lá fora, a tempestade fustigava a praça, e a chuva desenhava formas insólitas na vidraça…

Escrevia ela, no seu bloco de notas, ela, que sempre gostara de dias chuvosos, quando a melancolia se instalava nas coisas e na alma. Então, deixava-se vaguear por mundos imaginados, longínquos, e construía outras realidades. Agora, ali estava ela e não estava, sentada a uma mesa do Nicola.



Inesperadamente, Bocage entrou sacudindo o capote. Cabelo revolto. Ar descurado, de quem não anda bem com a vida. Olhou-a nos olhos, e o estremecimento foi mútuo. Sentou-se Bocage à mesa dela, sem cerimónia, sem esperar aprovação. Nem precisava. Ambos conheciam o poder da atracção.

Por momentos prevaleceu um fugaz silêncio eloquente, aquele que diz tudo sem dizer nada, e que durou uma eternidade. Só depois desse tempo indefinido, vieram as palavras:

Dos teus olhos bastou ver a luz brilhante, para que meu destino ficasse marcado nesse instante…

Ela sorriu-lhe, um sorriso melífluo, e retribuiu-lhe o versejar:

Acolho-te poeta, na minha fantasia, e do teu verso guardarei a utopia…



A utopia. Sim. Era tudo o que lhe restava. Gostaria de ter conhecido o Manuel Maria. Talvez pudesse ter sido a sua musa, inspiradora de versos ainda mais sublimes dos que aqueles que o poeta dedicara a Gertrúria. Sonhos, apenas sonhos! Sonhos inúteis, mas sonhos!

O vento aquietara-se e a chuva deixara de desenhar formas insólitas na vidraça. Uma luminosidade desluzida começava a despertar a letargia no Nicola. No bloco de notas, as palavras que ela escrevera, pensando naquele que tudo o que tentava dizer era verso, jaziam silentes…


(1) Quidquid tentabam dicere versus erat – Verso de Ovídio que revela a sua irresistível inclinação para a poesia.

in «OS DIAS DE JOSÉ... e Outras Narrativas» © Josefina Maller (a aguardar publicação)


sexta-feira, 21 de maio de 2010

PINGO D’ÁGUA...



Sombria vai a noite...


E aquele pingo d’água

ilumina os versos

que a folhagem sussurra

debruçada sobre

o pequeno abismo que a

separa do riacho

de águas mansas

que se afastam,

silenciosas,

para não despertarem

as estrelas...

segunda-feira, 17 de maio de 2010

MADRUGADAS...



Por vezes, a preguiça do Sol cobria a planície de brumas e silêncio. Porém, Rajid, que despertava todas as manhãs com o lamento de um melro, o qual fazia ninho entre os ramos de uma bela acácia, partia para a sua habitual digressão, apesar da penumbra.


Uma brisa delicada embalava as flores e as ervas da planície, ainda meio adormecida, e Rajid trotava com cuidado, não fosse despertá-las.

Porém, quase sempre, aquele silêncio era bruscamente interrompido pelo alvoroço do bater de asas e do cantar de um bando de pássaros azuis que vinha saudar a manhã.

A eles juntava-se o burburinho das águas, a sinfonia da folhagem e o relincho terno de Rajid. O Sol fazia dissipar então as brumas que o envolviam e descobria-se, radiante, enchendo de uma luz radiosa a paisagem.

A Natureza despertava do seu sono nocturno e tudo à sua volta se transformava, como que por magia.

Eram assim as madrugadas de Rajid, o cavalo selvagem.


in «História de um Cavalo Selvagem» © Josefina Maller (a aguardar publicação)

terça-feira, 11 de maio de 2010

ERA ENTÃO O MUNDO UM LUGAR DE DESENCANTO…


Era então o Mundo um lugar de desencanto, macerado pela dor de uma agonia, lenta e irremediável. Devorado por séculos de uma ignorância e uma incúria inconcebíveis. Inaudível, nos seus lamentos mais lancinantes. Um lugar onde o cantar da cotovia soava a melodia fúnebre.

Era o tempo de todos os tempos. Infinito. Imutável. Inexorável...

Até que um dia…

Subitamente, os céus rasgaram-se num esgar de fúria.




As nuvens foram, num ápice, sugadas pela boca imensa de um tufão e, por todo o Planeta, soou um rugido medonho, saído de entranhas, longínquas e desconhecidas, como se alguém estivesse a assassinar o Universo, desferindo-lhe golpes de uma inacreditável crueldade, e o Universo, trespassado pela dor súbita, provocada por essa desordem, não pôde conter o seu grito. Os ventos uivaram com toda a raiva que os vinha sufocando desde os tempos em que a Mãe Natureza começou a sentir os primeiros sintomas de uma doença grave, que veio a demonstrar ser altamente contagiosa e que foi se agravando à medida em que algo a que se chamou progresso ia avançando. Os uivos do vento ecoaram, então, por todo o Universo, como um grito de libertação.

Era então o caos. O caos sublime.

Tudo aconteceu inesperadamente.

As carnes de todos os seres vivos começaram a cair como chuva fétida. Homens e mulheres, velhos e novos foram atacados pelo que se admite ter sido o mais surpreendente tédio do Universo. Fracos e fortes, bons e maus, todos os animais vertebrados e invertebrados, caminhantes e rastejantes sobre a Terra evolaram-se, então, impelidos por uma ventania endoidecida. Toda a vegetação murchou e as águas das fontes, dos rios, dos lagos e dos oceanos secaram, tal o poder flamífero do Sol que, saturado, cingiu o planeta com um deslumbrante manto de fogo. E esse fogo era tudo o que restava do caos.

Veio depois o vazio.

O nada, na sua mais absoluta significância. O nada, mas não as trevas. Era uma luz intensa que fulgurava. Tão ofuscante que causaria pasmo e aquele terror primordial do desconhecido, se alguém ficasse para contemplá-la.

Iniciara-se revolta dos elementos. Ferozes. Saturados de raivas acumuladas, há longos, longos séculos, pelos maus-tratos que lhes foram infligidos. Desprotegido, o Planeta ficou então inteiramente à mercê de um Sol insensível, único elemento dominante no caos em que o Universo se transformou, o qual envolveu a Terra num abraço funesto, ao lançar os seus raios ultravioletas, como flechas envenenadas, sobre todos os povos.

Todavia, pela Terra, deambulava o esqueleto de um homem que, misteriosamente, sobrevivera ao tédio do Universo. Um ser sonâmbulo. Amostra de um caos absoluto. Simulacro de sombra ou vivo-morto, sem condição para repousar, em paz, o corpo descarnado. Por isso, aguardava, expectante, o desfecho desta rebelião dos elementos, e um destino singular e inimaginável, que o aguardava, lá, num lugar secreto, onde a vida fluía como um milagre…


in «A HORA DO LOBO» © de Josefina Maller (a aguardar publicação)

terça-feira, 4 de maio de 2010

A MORTE DO LOBO...



O Lobo, lindo, de pelagem cinzenta e olhar profundo, solitário e triste, cabeça baixa, caminha, cambaleando, pisando a folhagem, na minha direcção.


Os seus olhos tristes, feridos de morte, olham-me, com desespero.

Eu sei, ele sabe, a morte está perto.

De súbito, solta um longo e doloroso uivo, que soou em toda a floresta como uma despedida.

O Lobo estremeceu... Eu estremeci...

Conduzi-o até uma gruta, escondida entre abetos, e ali, no abrigo da folhagem, exalou o último suspiro, nos meus braços, que o abraçaram fortemente...

– Vai, Lobo, vai...

Leva contigo o meu coração despedaçado e as minhas lágrimas...

A tua vida foi uma constante luta pela sobrevivência, no mundo onde manda o homem. Que mal fizeste tu para que ele te assassinasse?

Mal nenhum, eu sei.

Tu partiste, Lobo. Para onde?...

Como posso saber?...

Só sei que nesta floresta, na nossa floresta, permanecerá a tua honestidade de Lobo e a nossa amizade, em cada madrugada que vier...

Para sempre, Lobo...

Para sempre...

 
(Origem da imagem: Internet)

domingo, 2 de maio de 2010

NEM SEMPRE OS LÍRIOS FLORESCEM...




Era uma vida como todas as vidas.
Ou não seria uma vida como todas as vidas?



Nem todas possuem a tranquilidade das árvores.

Não!

Era uma vida única. A serenidade habitava no seu semblante. Todos os seus gestos eram harmoniosos.

Caminhava como se flutuasse. A sua voz, afectuosa. O seu olhar, melífluo. E a sua sabedoria, infinita. Vivia numa cabana de madeira, construída no meio de uma pequena floresta, não muito afastada da povoação.

Ela procurava-o frequentemente. A tranquilidade daquela vida apaziguava os demónios que a atormentavam. Sempre foi recebida no pequeno jardim, que rodeava a cabana. Nunca ninguém ousou invadir a intimidade daquele lugar. Sentavam-se, cá fora, nuns bancos de pedra, e era debaixo da folhagem de um belo carvalho que ela sorvia as suas palavras sábias, com a avidez dos sequiosos. Quando chovia, ficavam debaixo do telheiro, sentados em cadeiras de verga, a olhar a chuva, num silêncio que tudo dizia.

Ninguém sabia o nome dele. Era conhecido simplesmente como o Velho Sábio da Floresta. Barbas e cabelos brancos e longos, ondulavam ao sabor do sopro do vento. Vestia longas túnicas, à moda dos velhos orientais. Numa das mãos trazia sempre uma pequena pedra, em forma de coração, de uma brancura transparente. Era a pedra da Sabedoria. Se a apertares com força, entre as tuas mãos, sentirás a sua energia benéfica. Dizia-lhe. E ela acreditava.



Um dia procurou-o, por se sentir perdida. Disse-lhe: Lanço à terra sementes que nunca florescem. Porquê?  – Referia-se às iniciativas que tomava para mudar o rumo à sua vida.

Na verdade, nem sempre os lírios florescem (1)... Vai, medita nestas palavras, e regressa apenas quando tiveres compreendido o significado delas… – Disse-lhe, então, o velho sábio.

Naquele dia, ela deixou-o, desassossegada. Nem sempre os lírios florescem… Que significado teriam aquelas palavras?

De regresso a casa, teve de atravessar um campo. Nesse campo, entre muitas outras pequenas flores, havia lírios silvestres. Contemplou-os longamente. Os lírios…Veio-lhe à lembrança o que disse Mateus: Olhai os lírios dos campos, não trabalham, nem fiam; e vede como crescem; nem mesmo Salomão, com toda a sua glória, se vestiu como um deles.

Fez-se então uma luz dentro dela.
Não sabia se havia compreendido o verdadeiro sentido das palavras do velho sábio, mas decidiu regressar à floresta, nesse mesmo dia, e disse-lhe: Velho, acabo de aprender com os lírios do campo que rodeia este lugar que nem sempre é possível cultivar um sonho…

O velho sábio apertou as mãos dela nas dele, e sorriu…

(1) Nec semper lilia florent – Nem sempre as coisas correm à nossa maneira (locução latina).


in «OS DIAS DE JOSÉ... e Outras Narrativas», © Josefina Maller (a aguardar publicação)

(Origem da imagem: Internet)