© Todos os direitos reservados

terça-feira, 27 de abril de 2010

ANTES DO MAR, AS ÁGUAS…



Um dia, ela desejou fazer uma viagem.


Disseram-lhe que seguir o caminho da Poesia era caminhar em direcção ao Paraíso. Durante vários dias, meditou sobre esse itinerário.

Pouco sabia desse trilho e desse Paraíso. Perguntou então onde podia encontrar o caminho da Poesia. Disseram-lhe que procurasse o bosque dos salgueiros debruçados sobre o rio, e seguisse um atalho juncado de folhas avermelhadas. Nele, encontraria gravado em cada árvore um pequeno poema. Devia segui-lo, ao longo da margem, em direcção à montanha. O Paraíso estaria onde os seus sentidos o vislumbrassem. Porém, quando se deparasse com ele, jamais poderia revelar o que os seus olhos vissem.

Pareceu-lhe aliciante esta promessa de idílio e de mistério.

Partiu então de madrugada, ainda o Sol deambulava pelo outro lado do mundo. Misteriosa, a bruma cingia-a delicadamente. Os seus passos rasgavam o silêncio daquela manhã. Seguia o seu instinto que dizia: Vem, vem por aqui… Ouvia o canto de um pássaro que parecia acompanhá-la, invisível, como um anjo.

Em breve estaria diante do bosque dos salgueiros debruçados sobre o rio. As águas iam tranquilas, e as árvores, rendidas ao mistério dessa mansidão. As folhas avermelhadas do Outono juncavam o caminho que ela devia seguir. Numa pedra, logo à entrada, liam-se estas palavras: Neste bosque venera-se Matsuo Bashô, e com ele a Poesia.

Matsuo Bashô. O poeta japonês.


Compreendia agora o que lhe disseram quanto ao caminhar em direcção ao Paraíso, seguindo o caminho da Poesia.

Na primeira árvore, o primeiro poema:

«Depressa se vai a Primavera
choram os pássaros e há lágrimas
nos olhos dos peixes»

Assim teve início esta viagem. Em cada árvore um poema de Bashô. Palavras simples, frases breves, conceitos profundos. Sim, na verdade, ela encontrava-se no Paraíso.

«Quietude:
as cigarras escutam
o canto das rochas»

Deixou-se então conduzir pelas palavras. Seguiu o curso do rio. Leu todos os poemas de Bashô, gravados nos salgueiros debruçados sobre as águas. O trilho terminava na montanha, junto à nascente do rio. Contudo, o que os seus olhos viram, jamais poderia ser revelado.

Como retribuiria ela a Bashô esta viagem pelo interior do Paraíso dele?

Decidiu então gravar na pedra, cravada na falda da montanha, um tributo a todos os poetas, ao jeito de Bashô:

Antes do mar, as águas (1)
antes das águas, o sopro
antes do sopro, o ser dos seres…


in «Os Dias de José... - E Outras Narrativas» © Josefina Maller (a aguardar publicação)

 (1) Ante mare undae – A causa precede o efeito, o todo provém da reunião das partes (locução latina)

terça-feira, 20 de abril de 2010

SÚPLICA...



Eis-me prostrada sobre a terra,

ainda húmida do orvalho da noite.

Sinto-lhe o cheiro forte e doce,

este cheiro que me conduz

a um tempo que desconheço,

a lugares nunca visitados,

a experiências nunca vividas,

a memórias imemoráveis,

a um sino que toca na escuridão,

a pedras soltas,

ruínas,

heras cobrindo muros...

Não sei onde estou,

não sei o que sou,

não sei...

O que queres de mim, terra,

que me chamas com o teu odor, forte e doce...?

Por que me arrastas

para estas desconhecidas lonjuras? ...

Deixa-me voltar

para o meu universo

feito de silêncios e sons,

de luas e sóis,

e desta flor que

desabrocha todas as manhãs,

no meu olhar...

domingo, 18 de abril de 2010

O CISNE



(das lendas: Cisne. H. 13 v.)


O cisne dobrou o flexível pescoço para a água e viu-se reflectido.

Então, de repente, compreendeu a razão da sua fraqueza e daquele frio que lhe atazanava o corpo fazendo-o tremer como de Inverno: e sem qualquer dúvida soube que a sua hora havia soado e que precisava de se preparar para a morte.

As suas penas eram ainda brancas como no seu primeiro dia de vida. As estações e os anos tinham-se passado sobre ele sem lhe manchar as vestes imaculadas; podia pois desaparecer, concluir em beleza a sua existência.

Erguendo o belo colo, dirigiu-se lenta e solenemente para debaixo de um salgueiro, onde costumava repousar durante o calor. Era quase noite. O ocaso estava agora tingido de púrpura e a água do lago tinha o tom violeta.

E no grande silêncio que havia em tudo, o cisne começou a cantar.

Até aí, nunca encontrara acentos tão plenos de amor pela Natureza, pela beleza do céu, da água e da terra. O seu canto dulcíssimo espalhava-se no ar, velado de nostalgia, até que, pouco a pouco, se foi extinguindo conjuntamente com a derradeira luz do horizonte.

– É o cisne – disseram comovidos os peixes, os pássaros, todos os animais do prado e do bosque – é o cisne que morre.


in «Fábulas e Lendas – contadas e escritas por Leonardo da Vinci no seu tempo» - Edição da Editorial Futura/1974, com tradução de Virgílio Martinho

(Origem da imagem: Internet)

terça-feira, 13 de abril de 2010

QUANDO O MUNDO NÃO CHEGA PARA ACOLHER A MINHA ERRÂNCIA... NA FÉ DE UM MONGE ME ABRIGO...



O que mais me seduz

em ti

é o sorriso que sempre

encontro nos teus lábios

apesar de saber dos teus

medos

dos teus desencantos

e da solidão a que te

impões quando

as sombras caem

sobre a tua cela de monge

e no silêncio da noite

apagas o teu desejo

de liberdade

numa oração...



O que mais me fascina

em ti

é a alegria com que

vives a tua vida

enclausurada entre

as velhas pedras de

um mosteiro

que te dá abrigo e

onde encontras

a tranquilidade

com que embalas

a tua alma

e a quietude com que

adormeces

os teus sonhos...


O que mais me cativa

em ti

é essa arte que buscas

entre as coisas de Deus

e a devolves, depois,

aos mortais como

relíquias eternas

para serem admiradas

veneradas

através de formas divinas

anjos e arcanjos

santos e santas

flores de um jardim

imaginário

de um paraíso só teu...


O que mais me encanta

em ti

é a fé que me transmites

com o teu modo de ser

e de viver os mistérios de

Deus

de quem por vezes

me afasto

e me perco

para encontrá-lo de novo

em ti

no teu sorriso

na tua alegria

na tua arte

na tua imensa fé...

sexta-feira, 9 de abril de 2010

CÂNTICO FINAL...



Chegara, finalmente aquele 17 de Outubro. O ano era o de 2009. Fazia uma daquelas magníficas tardes de Outono, em que o Sol dourava a folhagem, amarelecida, dos choupos, no jardim.


O silêncio era o de águas que corriam ali perto.

Eleutéria acabara de morrer.

Ouvi estas palavras serenamente. Afinal, Eleutéria tinha 100 anos. Murchara como uma uva passa. A sua doença limitava-se a ser o cansaço da vida. Quando se perde a força da juventude, viver torna-se um fardo. Dizia Eleutéria, frequentemente.

E tudo aconteceu como previra.

Tantas vezes passara pelo 17 de Outubro! Esse dia, era o dia do seu pressentimento. Dizia. Comemorava-o, como o dia da morte que havia de vir, tal como celebrava o dia do seu aniversário, a 27 de Maio. Nascera em 1909.

Um século de uma vida vivida como se estivesse permanentemente em cima de um palco: representando. Sim, representando várias Eleutérias. Sempre se sentira no lugar errado, rodeada das pessoas erradas, e fazendo as coisas erradas. Qual das que representava no palco da vida seria a verdadeira? Nem ela própria sabia.

Nunca conseguira dominar o seu destino. Tentou ser escritora. As palavras eram o seu sonho maior. Mas não a deixaram. Outros valores menores sempre se levantaram diante da sua obra (quase toda de intervenção, numa época em que a literatura de água com açúcar estava em voga). Talvez a indiferença que os editores votavam ao seu talento, lhe tivesse corroído a alma, e ela deixara-se abater como um tordo.

Antes de se sentar na sua cadeira de baloiço, de onde não sairia mais, a não ser para ir deitar-se, com ajuda, queimou todos os seus papéis, todos os seus manuscritos, todas as suas recordações, fotografias, para que não ficasse rasto do que foi. E até ela foi cremada, e as cinzas lançadas sobre o oceano, para que nada restasse da sua existência na Terra.

De Eleutéria resta apenas a recordação de uma mulher que teve o sonho de ser escritora e um sistema editorial caduco não permitiu.

E eu, que a conheci e cheguei a ler alguns dos seus escritos, posso afirmar que o mundo perdeu quem poderia ter sido uma das maiores autoras do século.

Como eu compreendia o seu desassossego!...

...

Voai cinzas de Eleutéria! Acompanhai a essência que se foi. Juntai-vos algures num paraíso que houver longe, para que Eleutéria renasça!

(Origem da imagem: Internet)

quarta-feira, 7 de abril de 2010

O BANHO ESQUIVO DA LUA...



A noite veio e o mundo adormeceu.


Então a Lua, despiu os seus véus de prata e mergulhou nas águas do rio, enquanto as sombras ocultavam a sua nudez, de luminoso mármore branco.

Os pirilampos apagaram os seus lumes, e todos os seres noctívagos recolheram-se nos ramos mais altos das árvores. Nas margens.

Os peixes refugiaram-se nas grutas rochosas, lá nas profundezas das águas do rio.

O silêncio era quase absoluto. Nenhum ser ousava feri-lo.

Ouviam-se apenas uns suspiros. Uns lânguidos suspiros.

Era a Lua que suspirava, do prazer intenso, que cada mergulho lhe proporcionava. Por vezes, deixava-se afundar, e seguia o curso das águas, que passavam vagarosas, sem urgência...

A Estrela do Pastor estava vigilante. Nada poderia perturbar o banho da Lua, que se prolongou até ao amanhecer.

Quando o Sol começou a despontar, a Estrela enviou um dos seus raios luminosos, anunciando à Lua o despertar do mundo.

Então a Lua vestiu os seus delicados véus de prata, e lançou-se num voo gracioso até aos confins do Universo, deixando pelo caminho pequenas gotas de água, que logo se transformaram em estrelas.

E, no rio, ficou um rasto luminoso, que tornou as águas mais límpidas e misteriosas.









A partir de então, quando a noite chega, ouvem-se ainda os suspiros de prazer da Lua, no seu banho esquivo, naquela noite em que o mundo adormeceu...






(Origem da foto da Lua: Internet)