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sexta-feira, 9 de abril de 2010
CÂNTICO FINAL...
Chegara, finalmente aquele 17 de Outubro. O ano era o de 2009. Fazia uma daquelas magníficas tardes de Outono, em que o Sol dourava a folhagem, amarelecida, dos choupos, no jardim.
O silêncio era o de águas que corriam ali perto.
Eleutéria acabara de morrer.
Ouvi estas palavras serenamente. Afinal, Eleutéria tinha 100 anos. Murchara como uma uva passa. A sua doença limitava-se a ser o cansaço da vida. Quando se perde a força da juventude, viver torna-se um fardo. Dizia Eleutéria, frequentemente.
E tudo aconteceu como previra.
Tantas vezes passara pelo 17 de Outubro! Esse dia, era o dia do seu pressentimento. Dizia. Comemorava-o, como o dia da morte que havia de vir, tal como celebrava o dia do seu aniversário, a 27 de Maio. Nascera em 1909.
Um século de uma vida vivida como se estivesse permanentemente em cima de um palco: representando. Sim, representando várias Eleutérias. Sempre se sentira no lugar errado, rodeada das pessoas erradas, e fazendo as coisas erradas. Qual das que representava no palco da vida seria a verdadeira? Nem ela própria sabia.
Nunca conseguira dominar o seu destino. Tentou ser escritora. As palavras eram o seu sonho maior. Mas não a deixaram. Outros valores menores sempre se levantaram diante da sua obra (quase toda de intervenção, numa época em que a literatura de água com açúcar estava em voga). Talvez a indiferença que os editores votavam ao seu talento, lhe tivesse corroído a alma, e ela deixara-se abater como um tordo.
Antes de se sentar na sua cadeira de baloiço, de onde não sairia mais, a não ser para ir deitar-se, com ajuda, queimou todos os seus papéis, todos os seus manuscritos, todas as suas recordações, fotografias, para que não ficasse rasto do que foi. E até ela foi cremada, e as cinzas lançadas sobre o oceano, para que nada restasse da sua existência na Terra.
De Eleutéria resta apenas a recordação de uma mulher que teve o sonho de ser escritora e um sistema editorial caduco não permitiu.
E eu, que a conheci e cheguei a ler alguns dos seus escritos, posso afirmar que o mundo perdeu quem poderia ter sido uma das maiores autoras do século.
Como eu compreendia o seu desassossego!...
...
Voai cinzas de Eleutéria! Acompanhai a essência que se foi. Juntai-vos algures num paraíso que houver longe, para que Eleutéria renasça!
(Origem da imagem: Internet)
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