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terça-feira, 31 de agosto de 2010

A ÁGUIA NÃO APANHA MOSCAS…




Era uma cidade onde todos se conheciam.


As Moscas, que a governavam, eram pequenas, física e mentalmente. Não tinham honra, nem bom-nome. Praticavam actos que causavam danos, humilhação, tristeza e agastamento aos cidadãos, perturbavam a sua satisfação e o seu contentamento, bem como o seu humor e disposição, por isso, não tinham ética, nem sabedoria, nem lealdade, nem generosidade, e muito menos coragem. Qualidades dos bons dirigentes.

Lao Tzu, o grande Mestre de uma também grande civilização que floresceu na China, por volta de 600 a. C., ensinou-nos que os líderes deveriam governar um grande país com o mesmo cuidado com que se cozinha um pequeno peixe, e dar provas de humanidade, de compaixão e de mercê, considerando tudo isto como um sinal do verdadeiro poder.

Mas nada disto imperava naquela cidade onde todos se conheciam.

Um dia, uma Águia, que ali vivia e se dedicava à escrita, escreveu um artigo para um jornal, sobre a podridão daquela governação, e sobre a corrupção e o abuso de poder que ali reinavam. Todos o sabiam. Todos o diziam. Todos, em privado, chamavam ladras às Moscas, que governavam.

Contudo, um dia, a Águia atreveu-se a dizê-lo em público e foi processada pelas Moscas que governavam, e imputaram-lhe a prática de crimes de difamação agravada. Agravada porque os visados eram Moscas da administração pública. Se fossem honrados varredores de rua, com bom-nome, a difamação já não seria agravada. As tais Moscas ofendidas eram corruptas e ladras, mas não podia dizer-se isto em público. Apenas em privado, em surdina. Todavia, o rumor desses epítetos inundou a cidade como uma onda de mar.

A Águia, por dizer essas verdades em público, foi condenada a uns tantos dias de multa, por atentado contra a honra e o bom-nome das intocáveis Moscas; e por ter perturbado a satisfação e contentamento, bem como o humor e disposição dessas Moscas. Além da multa, a Águia foi também condenada a pagar uma indemnização às ofendidas, para lhes proporcionar conforto, compensando, por este único modo possível, perdas efectivas e outras situações de grande sofrimento. De grande sofrimento. Pasme-se!

Perante esta sentença, questionou-se, em surdina, como pode ofender-se a honra de Moscas que, apesar de não terem honra, governam?

À Águia foi-lhe exigido um comportamento de irrepreensível urbanidade, cordialidade e civilidade na sua actuação para com as Moscas dirigentes.

Condenou-se a Águia, mas não se condenou as pequenas Moscas que governavam aquela cidade, onde todos se conheciam, e as quais não tinham nem honra, nem bom-nome, nem um comportamento de irrepreensível urbanidade, cordialidade e civilidade na sua actuação como indivíduos da administração pública.

Na verdade, a Águia não apanha Moscas (1) , porém, quando as Moscas extravasam as suas competências e submergem a verdade, a metamorfose da Águia é inevitável…



(1) Aquila non capit muscas – Um espírito superior não se preocupa com ninharias (locução latina).

in «OS DIAS DE JOSÉ... E outras Narrativas» © Josefina Maller (a aguardar publicação)

Web site da imagem: eccn.edu.pt







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