No primeiro dia, vieram uns e outros de todos os lados.
No segundo dia, vieram uns.
No terceiro dia, vieram outros.
No quarto dia, não veio ninguém.
No meio da praça vazia, tão vazia, que nem um cão se via, o Presidente, empoleirado no seu palanque dourado, não tinha a quem dirigir a palavra. Intrigou-se então o homem. Porquê, se no primeiro dia vieram uns e outros, de todos os lados, ouvir a conferência do cientista sobre o aquecimento global? Se bem que no segundo dia, sim, só vieram uns, assistir à dissertação do escritor sobre o Acordo Ortográfico; e, no terceiro, outros vieram para o sermão do padre acerca das bem-aventuranças. Mas no quarto dia, não vir ninguém ouvir o discurso do Presidente sobre o estado da governação? Ele que já era Presidente há tantos anos, e sabia das coisas! Era muito estranho. Ali havia gato! Um grande gato!
O Presidente ainda esperou algumas horas, sentado numa das cadeiras que havia no palanque. Talvez aparecesse alguém para o esclarecer daquele grande mistério. Nem um cão? Nem um pássaro? Ninguém para o ouvir? Estranho. Muito estranho.
O tempo passou, até que veio a noite. Entretanto, o Presidente adormeceu, sentado na cadeira. Parecia um falecido, à luz da Lua. O seu rosto estava branco. Os braços descaídos ao longo do repolhudo corpo. As pernas esticadas.
Foi assim que todos, vindos de todos os lados, o encontraram ao quinto dia. Um rumorejo percorria a praça, agora cheia de todos. Falavam por entre dentes. Perguntavam-se se o Presidente estaria morto. O que lhe teria acontecido? Ninguém se atrevia a falar alto. Ninguém se atrevia a aproximar-se. Ninguém se atrevia a coisa nenhuma. Limitavam-se a observar e a cochichar. Até que chegou Angélica, mais conhecida como a “
casta Angélica”, que, muito ansiosa, foi abrindo caminho até ao palanque, por entre a multidão, estupefacta.
A “
casta Angélica”, plantada nos seus sapatos altos, vermelhos, a condizer com um vestido florido, que deixava antever o que não era conveniente ver-se, subiu, com muita elegância, as escadinhas que conduziam ao palco, onde o Presidente continuava sentado na cadeira, como um falecido, e, delicadamente, tocou-lhe no ombro. O Presidente acordou estremunhado. Mais do que estremunhado, estremunhadíssimo, com uma expressão de terror desenhada no rosto, demasiado branco. Dir-se-ia estar diante de um fantasma.
Um e outro puseram-se então a dizer
a oração do macaco (1), ou seja, a falar por entre dentes, para que ninguém ouvisse o que diziam. O Presidente, notava-se, estava apavorado. As palavras que trocavam, ninguém as ouvia, apesar do profundo silêncio que se fazia na praça. Contudo, podia deduzir-se o teor da conversa, pelas expressões comprometidas de ambos.
De súbito, a “
casta Angélica” retirou-se do palanque com um sorriso disfarçado nos lábios pintados, a condizer com os sapatos vermelhos, e passou pelo povo, como cão por vinha vindimada.
Entretanto, o Presidente levantou-se, como se nada tivesse acontecido, ajeitou os cabelos e a gravata, apertou os botões do casaco, abeirou-se do microfone e quando ia a começar a falar houve uma debandada geral: todos os que, no quinto dia, vieram de todos os lados para ver o Presidente, que todos comentavam ter falecido, sentado na cadeira do seu palanque, retiraram-se, apressadamente, da praça.
Pasmado, o Presidente ficou novamente sozinho, em cima do palanque, na praça vazia, sem ter a quem dirigir o seu discurso sobre o estado da governação.
Nem, um cão! Nem um pássaro. Ninguém.
in «
OS DIAS DE JOSÉ –
e Outras Narrativas...» © Josefina Maller (a aguardar publicação)
(1) Dire l’orazione della bertuccia – Falar por entre dentes (locução latina).
Origem da imagem:
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