Era um casebre velho. Muito velho. Pequeno. Mofoso. Destelhado. De um só compartimento.
Nele habitavam um velho e o seu fiel amigo, um cão, já velho também, chamado Gaspar, e cego de um olho.
O velho sobrevivia das sobras que, todos os dias, coxeando, recolhia pelas portas das casas, acompanhado do seu cão. Dois farrapos de vida caminhando pelas ruas da cidade nova, que cresceu ao redor da colina, onde o casebre velho, do homem velho, se mantinha de pé, graças a um qualquer milagre inexplicável.
Quando chegava a casa, o velho repartia a comida com Gaspar, que agradecia tanta bondade, abanando o rabo e lambendo-lhe as mãos e o rosto. Por vezes, a colheita era minguada. Mas tal não impedia o velho de dividir o pouco que havia para comer, com o seu adorado cão. O seu único amigo. A sua única alegria. O seu único bem. Ditoso velho! (1)
Assim viveu durante alguns anos, pode dizer-se, feliz, porque a amizade e a lealdade de um cão dão alegria a um homem solitário, e para o velho nada no mundo valia mais do que a amizade daquele seu único, fiel e verdadeiro amigo.
Porém, lentamente, a idade foi-lhe consumindo as pernas e as forças, e chegou o tempo em que o velho não mais pôde mendigar pelas ruas da cidade nova. Passava os dias e as noites, deitado na enxerga já gasta, corroído pela fome e pelo frio. Gaspar, a seu lado, lambia-lhe o rosto, num gesto de desvelado carinho, e gania baixinho, condoído pela dor do companheiro.
O Inverno chegara, impiedoso. O velho e o cão partilhavam a mesma tigela que armazenava a água da chuva, que bebiam. Era tudo o que tinham. Certa manhã, o velho olhou para o cão com uns olhos estranhos. E se o matasse e comesse a sua carne? Aplacaria aquela fome que lhe devorava as entranhas e talvez conseguisse algumas forças para poder voltar a mendigar!
Maldito pensamento! Gritou, de súbito, o velho. Como podia engendrar tal execração! Os olhos de Gaspar olhavam-no com tanta piedade, tanto carinho!
Que blasfémia! O velho abraçou o cão e chorou amargamente.
Prefiro morrer, meu fiel amigo, do que comer a tua carne para poder viver, porque há valores que falam mais alto do que a própria fome. Prefiro morrer livre, do que escravo da necessidade. Sussurrou o velho, cingindo Gaspar com as poucas forças que lhe restavam. E naquele dia, permaneceu imóvel, abraçado ao cão até ao anoitecer.
Quando o Sol se escondeu, por detrás da colina, com ele levou a alma do ditoso velho. Gaspar, apercebendo-se de que o seu amigo o deixara, uivou como nunca tinha uivado. Lambeu-lhe o rosto inerte e frio, numa tentativa de lhe devolver a vida. Olhou-o com um olhar profundamente triste. Agora, tinha o velho, todo para ele. Poderia começar a rasgar-lhe as carnes, e a saboreá-lo. A fome também lhe roía as entranhas. Gaspar tornou a contemplar, condoído, o cadáver do seu velho amigo. Ganiu baixinho, como que chorando. Depois aninhou-se ao seu lado, e ali ficou.
Quanto tempo, não se sabe. O que se sabe, foi o que se viu, um dia, quando vieram demolir o casebre, para ali construírem uma grande superfície: os esqueletos de um velho e de um cão, enlaçados, sobre a enxerga apodrecida, que ambos partilharam, na vida e na morte.
(1) Fortunate senex – Locução latina que se aplica a qualquer ancião que tem uma velhice feliz.
in «
OS DIAS DE JOSÉ... e Outras Narrativas» © Josefina Maller (a aguardar publicação)
Origem da imagem:
http://www.cki.com.br/Favoritos/videos_e_fotos.htm
Se me é permitido abusar do espaço, conto uma história:
ResponderEliminarEm 1979, em Cabinda, ao chegar de visita a casa de um amigo recente, amigo antigo de um amigo antigo, levantou-se num alarido ladrado e ameaçador, um cão de bom porte e aspecto, embora a minha ignorância em canicultura o tivesse atrevidamente classificado de “sem pedigree”.
À moradia, construída num declive e apartada da rua uns cinco metros, acedia-se por uma curta e estreita ponte que, partindo do portão rasante ao passeio, galgava uma espécie de fosso ajardinado para desaguar na varanda que corria ao longo da fachada.
Embora o Maia, o meu amigo antigo, fosse visita habitual, tocou-me levemente no braço e fez-me sinal de aguardar. Quase de seguida soou a voz do doutor Fatela, juiz, o meu amigo recente, que apenas assomou à porta:
- Ó Secretário, podes ficar descansado. Não conheces o Mário, mas é boa gente e como vês está bem acompanhado.
O tom era normal, informal e sem afectação, como se falasse ao homem contratado para a segurança da casa ou com o seu filho menor que brincasse na varanda.
O Secretário aquietou-se, abanou a cauda por um momento e de seguida enrolou-se no chão como se nada se tivesse passado, enquanto eu avançava já confiado, embora meio atarantado com a breve cena.
Apercebendo-se do meu ligeiro estupor, contou-me então o doutor que o Secretário fora companheiro de um certo Joaquim, pobre pedinte meio louco, de origem portuguesa, que vivia num casebre nos arredores de Cabinda.
Que o Joaquim e o Secretário compartilhavam tudo: a única cama, o único prato, a única malga da água.
Que o Joaquim conversava com o Secretário, seu amigo e confidente, sem lhe dar ordens, instruções ou imposições. Eram amigos, compartilhavam-se inteiramente.
Estava o doutor convencido, assim mo disse, que se o Secretário não aprendera a expressar-se correctamente no vernáculo do Joaquim, aprendera sim a entendê-lo e que todos os que os conheciam se lhe dirigiam em português corrente sem que alguma vez se apercebessem de não ser perfeitamente entendidos.
Ora aconteceu que depois do 25A, uns meses antes da independência de Angola e numa fase de violentos confrontos militares na cidade, uma organização de caridade conseguiu convencer o Joaquim a meter-se num avião militar e ir para Lisboa.
Antes de partir o Joaquim convocou o doutor para uma reunião a três em que lhe explicou e ao Secretário que “vou estar fora por uns dias e vocês têm de cuidar um do outro até que eu volte, ham?”.
Aceites que foram os tratos pelas partes, partiu o Joaquim e não regressou. A vida “essa nossa inimiga permanente” abandonou-o sem pré-aviso depois de o ter arrastado para aquela terra estranha onde nem os cães o entendiam.
O Secretário, esse, depois de uns meses a ganir suavemente as saudades pela noite fora, acabou por aceitar o óbvio e adoptou o meu amigo Fatela.
Como as coisas são, Mário! A minha história foi inventada, completamente. E estou a ver que não inventei nada. Um ou outro pormenor diferente, a sua história verdadeira é quase igual à minha história inventada. Isto faz-me reflectir: as histórias que escrevemos estão no nosso subconsciente. O que pensamos que inventamos, vivêmo-lo noutro lugar, noutro tempo. Por isso as palavras brotam tão espontaneamente...
ResponderEliminarA Arte é vida?
ResponderEliminarÉ a Vida uma Arte?
Qual é original?
Importante é que a reprografia seja de qualidade, à nossa imagem e semelhança!
Sem Arte não vivo, e a Vida é ela própria uma Arte. Há quem consiga ser original nas duas. Não sei se estou nesse caso. Mas sei que tudo o que escrevo é à minha imagem e semelhança. E isso é importante, sim, Mário, pelo menos para mim.
ResponderEliminarObrigada pela sua visita.
Magnífico. E a publicação tarda?
ResponderEliminarObrigada, Francisco. A publicação tarda, como tudo tarda neste país. Esta colectânea de contos foi rejeitada por cerca de 70 editoras portuguesas. «O texto tem qualidade» dizem, MAS... E o "mas" chega e esmaga-me.
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