Hoje despertei muito cedo, porque ouvi um choro estranho. Um choro que me pareceu sufocado, como se quem o chorasse não quisesse ser ouvido. Contudo, às vezes, mesmo não querendo, não podemos esconder o choro, porque ele solta-se como se tivesse vida própria e enrosca-se, como uma névoa, em quem o ouve.
O choro existe para ser chorado. Aprendi isto também com Sebastião. E o choro que hoje ouvi, logo pela manhã, ainda a Lua andava a cirandar no Céu – a expressão é de Sebastião, que gosta das palavras, por isso aprendeu as mais que pôde, durante a sua já longa vida; ele diz que não sabe muito bem a sua idade, mas já contou muitas, muitas Luas Cheias, uma infinidade de Luas Cheias, que dava para encher o mundo, se cada Lua fosse uma Lua; como é sempre a mesma, que isso também sabe Sebastião, não dá para encher o mundo; Sebastião não andou na Escola, mas aprendeu a ler e a escrever com um missionário chamado Frei Francisco Xavier, que também lhe ensinou Inglês e a canção On a blue road… – o choro que ouvi era um choro estranho…
Saí então da palhota e segui o rasto do choro, que não era um choro qualquer. Foi então que a vi, debaixo do embondeiro: uma cadela rafeira, com três filhotes já nascidos, e outro ainda dentro do seu corpo, com dificuldade para ver a luz do Sol. Aproximei-me com cuidado, dirigindo-me à cadelinha com delicadeza, como me ensinou Sebastião: Devemos ser delicados com os animais, porque eles olham-nos com benevolência – por desconhecerem a ferocidade dos homens – acrescentava a jeito de reprovação.
Ela olhou para mim, angustiada.
Fui a correr chamar Sebastião. Velho experiente. Viveu muito, viu muito, aprendeu muito. Sabia quase tudo sobre sobrevivência, ou não fosse ele um sobrevivente. Não é preciso universidades para nos ensinar as coisas da vida. Bastam as dificuldades. Aprendi isto também com Sebastião. Não há melhor escola do que a necessidade. Se quisermos manter o nosso corpo sobre as pernas, vamos buscar forças e conhecimentos ao fundo de abismos para continuarmos vivos. Viver é um instinto, diz Sebastião.
Por isso, com habilidade e delicadeza, ajudou a cadela a expulsar o cachorrinho que estava atravessado nas suas entranhas.
E como foi lindo ver soltar-se aquele ser; e como foram gratificantes as lambidelas com que a mãe, agradecida, mimoseou Sebastião. Acabámos por acolhê-los na nossa cabana. E foi assim que na minha vida entrou aquela que viria a ser a minha melhor e mais fiel amiga: a Josefina.
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On a blue road...» © Josefina Maller (a aguardar publicação)
E essas amizades são para toda a vida.
ResponderEliminarEu sei por mim como são fiéis, por vezes até demais...!
Maria
Obrigada, Maria. E por serem demasiado fiéis e amigos, quando partem (e eu sei lá para onde...) o nosso coração fica destroçado.
ResponderEliminarSebastião Alba?
ResponderEliminarNão, não é o Alba, é simplesmente Sebastião, uma homenagem a um Homem negro que conheci quando era criança. Era conhecido pelo Preto Velho, o mais maravilhoso ser humano que conheci.
ResponderEliminarBela homenagem, então.
ResponderEliminarObrigada, Francisco. O Sebastião merece-a, apesar de já não estar entre nós.
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