Arrastou-se pela vida até ao derradeiro dia.
Viveu cada minuto da sua existência tão intensamente como se fosse o último. Tinha um jeito peculiar de contemplar o mundo. Via-o através de um olhar arrebatado, carregado de melancolia. Era uma criatura silenciosa, afável, solitária. Amava as árvores, as flores, particularmente as rosas, e os animais com um amor grande. Imensurável.
Amava, de igual modo, também as palavras, a causa maior de todas as suas mágoas, de todos os seus desencantos, de todas as suas frustrações, de todos os seus desencontros, de todos os seus desamores, porque a palavra da mulher não palpita, diziam-lhe os homens, seus ímpares na escrita que, na verdade, não sabem, nem nunca souberam coisa alguma acerca do universo da mulher, tão repleto de imponderáveis.
Por vezes, sentava-se num rochedo, à beira-mar e, embalada pelo sussurro das águas, escrevia versos, que lançava às ondas, para que estas os arrastassem até lonjuras inatingíveis. Versos que só a ela diziam respeito, e que com ninguém mais partilhava, à excepção do grande oceano.
Quando não se sentia inspirada, distraía-se a escutar o crocitar das gaivotas, que lhe contavam segredos do mar: lá no fundo, havia um mundo, e nesse mundo vivia um príncipe solitário, num palácio de vidro, onde o destino o mantinha prisioneiro, há séculos, esperando que uma bela donzela viesse libertá-lo. Poderia ser ela, essa donzela libertadora, se fosse bela, ou se soubesse como chegar a esse palácio submerso. Como não era bela e também nada sabia dessas profundezas, limitava-se a lançar às águas os seus sonhos, os seus versos e cantava baixinho enternecedoras melodias de amor, na esperança de que esses sonhos, esses versos e esses cânticos chegassem àquele mundo que havia lá no fundo, e pudesse libertar o príncipe solitário.
O seu quotidiano era feito de muitos pequenos nadas. Coisas que para os outros eram insignificantes, mas que para ela eram o cerne da sua existência. E em tudo o que fazia, as palavras estavam presentes. Palavras que diziam do bem, do bom e do belo que a vida encerra, e poucos eram os que sabiam desbravá-las. Tinha um sorriso afectuoso, que incorporava às palavras e distribuía pelas ruas como se de panfletos se tratasse.
Contudo, ninguém estava interessado nas suas palavras. No seu sorriso complacente. O mundo tornara-se um lugar de urgências, cheio de gente vazia e apressada, onde viver era caminhar para o nada, passo a passo.
Ela arrastava-se por esse mundo esvaziado, carregando todas as suas palavras às costas, não como se carregasse um fardo, mas como se transportasse o destino do próprio mundo.
Até que um dia, a melancolia que sempre a acompanhou, degenerou em tristeza, e a tristeza se não é aplacada, torna-se fatal.
Quando a encontraram em casa, sem vida, sentada na sua cadeira de verga, junto à roseira que guardou tantos dos seus segredos, entre as suas mãos jazia um caderninho de capa amarela, onde estavam escritas aquelas que foram as últimas palavras que deixou ao mundo, em jeito de despedida, e que, afinal, resumiam a sua ideia de eternidade:
Quando eu morrer, as rosas continuarão a florir…
in «
Os Dias de José... e outras narrativas» © Josefina Maller (a aguardar publicação)
Foto © Josefina.Maller
é límpida, a tua escrita.
ResponderEliminar:)
Obrigada pela passagem, Francisco, e pelas palavras gentis.
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