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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

VOZES DE NINGUÉM…




Soam cornetas, trombetas e tambores.
 
O caos instala-se nas ruas. Ouvem-se gritos. Choros. Clamores. Multidões fogem para lugar nenhum. Estão encurraladas. Fugir para onde, se todos os lugares estão contaminados? Contaminados com quê? Não se sabe. Alguém veio para a rua gritar. O que se passa? Ninguém, na verdade, sabe. Ninguém ouve ninguém. Apenas correm. Gritam. Choram.
 
...
 
E para que servem as cornetas, as trombetas, os tambores? Para alertar. Alertar o quê? Não se sabe. É costume. Sim, é um costume medieval. Mas não estamos na Idade Média. Então porquê as cornetas, as trombetas, os tambores? Porque sim. É preciso que todos ouçam. Que todos fujam. Que todos…
 
Que todos o quê?...
 
Tudo é confuso. Já há mortos e feridos, ali para o lado do cais. O estuário do rio está cheio de gente. Uns afogam-se por não saberem nadar. Outros nadam para a outra margem. Que tiros são estes? Porquê os tiros? É preciso ordenar o caos. Mas o caos não se ordena. É simplesmente caos.
 
Quem começou esta balbúrdia? Alguém que veio para a rua gritar. E basta que um grite, todos começam a gritar também. E ninguém sabe explicar porquê. Vêm os cavalos da Guarda, em correria. O que provoca ainda mais desordem. Uns são lançados para o chão. Espezinhados. Esmagados pelo peso do tumulto. Ouvem-se mais tiros. Agora de canhão. Despertaram os canhões do forte, adormecidos há séculos. Atiram contra tudo e contra todos. Gera-se uma confusão tal que a cidade deixa de existir como cidade. É um turbilhão de gente que foge. O casario explode, com os tiros dos canhões.
 
Em cima de um telhado um gato mia. Os pássaros que viviam nas árvores da Avenida fogem espavoridos. Procuram um lugar mais seguro. Mas todos os lugares estão contaminados. Gritam. Contaminados com quê? Perguntam. Ninguém sabe. Só se sabe que estão contaminados.
Fujam! Fujam! Soam cornetas, trombetas e tambores. Ecoam agora também os canhões do forte que estavam adormecidos há séculos.
 
À varanda do palácio chega uma embaixada de homens barrigudos, importunada com a confusão. Que vozes são essas? Perguntam. Alguém responde: São vozes de ninguém… Ah! Então é isso?!
 
Os homens barrigudos viram as costas. Fecham as portadas da varanda. Regressam ao conforto do palácio, onde brilham os cristais e o ouro e o mármore e a prataria.
 
Ouvem-se ecos de um brinde. Os homens barrigudos brindam dentro do palácio. A quê? Nunca ninguém jamais o soube. As palavras daquela saudação são abafadas pelo som cristalino de copos.
 
Cá fora o caos continua…
 
in «Os Dias de José... (E Outras Narrativas Desassombradas

© Josefina Maller
 

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