A "Menina Nua"
Chamava-se Aurélia Magalhães Monteiro e era conhecida por Lela, Lelinha ou
pela “Ceguinha do 9” - para a eternidade ficará sempre a ser a “Menina Nua” da
Av. dos Aliados, estátua que toda a cidade conhece e aprecia.
Nasceu no dia 4 de Dezembro de 1910, na freguesia do Bonfim e, pouco tempo
antes de falecer, dizia-me que “tinha sido uma das mulheres mais apreciadas e
cobiçadas do seu tempo...”.
Vivia no rés-do-chão do Bloco 9 do Bairro da Pasteleira, numa casa simples
e humilde com flores a enfeitarem a entrada e a sala de jantar.
Um dia convidou-me a entrar e contou-me um pouco da história da “Menina Nua”:
- «Tinha 21 anos quando fiz de modelo para o Henrique Moreira, o mestre que
fez a estátua: Mais tarde colocaram-me na Avenida dos Aliados - que belos anos
aqueles! Estive duas semanas a “posar” e ainda hoje recordo com alegria e
saudade aqueles momentos de trabalho, pois posso morrer amanhã que todos
ficarão a saber quem era a Lela... Além disso, nessa altura, dava-me bem com os
artistas, era bonita e eles convidavam-me. Andava por toda a parte, ganhei uns
“cobres” com o Henrique Moreira, mas hoje... Resta-me a consolação de estar
ali, de costas voltadas para o Almeida Garrett e de frente para o D. Pedro IV.»
Perguntei-lhe nessa altura se não tinha havido problemas com a nudez da
estátua - por exemplo, proibições, censuras.
Ela respondeu-me:
- «Bem, sabe que naquela época havia certos sectores que se opunham
claramente e até ficaram escandalizados com a “Menina Nua”. Nós éramos muito
tacanhos e veja bem que há 50 anos as ideias eram realmente diferentes. Havia o
Salazar, a Pide e o povo era mais fechado, mais religioso. Felizmente o mestre
Henrique Moreira conseguiu “levar a água ao seu moinho” e lá fiquei, de pedra e
nua, assim como Deus me botou ao Mundo...»
Sorriu de imediato, mostrando ainda réstias de um rosto bonito e de uma
boca fina, onde já rareavam os dentes, vítima do peso dos anos e das canseiras
e desgraças da vida. Além disso, imagine uma “moçoila”, no tempo da “outra
senhora”, a expor-se toda nua perante uns homens de tela e pincéis ou bocados
de pedra. Bem... era quase como ser comunista ou mulher da vida.
Fez-se uma pausa para mandarmos umas “bocas” contra o sistema do
antigamente. Prossegui, perguntando-lhe quando e onde tinha começado a ser
modelo. Antes de me responder, fica um pouco pensativa, levanta-se e
encaminha-se para o seu quarto, vasculha dentro do guarda-vestidos e traz-me um
amontoado de papéis e fotografias.
- «Vá, veja lá tudo isto» - diz-me. (Anotei visualmente uma série de
fotografias, pequenas referências, recordações e memórias da “Menina Nua”). «De
qualquer modo, e se a memória não me falha, comecei com o mestre Teixeira
Lopes, na figura-modelo da rainha D. Amélia. Esta estátua encontra-se
atualmente no museu com o mesmo nome, em Vila Nova de Gaia. Nessa época tinha
muita vergonha. Era uma “moçoila” com 18 anos, bem feita e bonita. A minha mãe
tinha falecido e fiquei mais tarde com uma madrasta, de quem por acaso não
gostava nada; por isso mudei-me para o Bonfim, para casa da minha santa avó.
Que tempos... Nessa altura, iniciei-me como modelo nas Belas Artes do Porto e
lentamente fui-me habituando, até que fiquei mais descarada...»
Levantou a cabeça e, numa reflexão interior, com risos de vaidade e
inconformismo, continuou:
- «Ah, nesse tempo, punha a cabeça dos rapazes em fogo, era bonita e não
havia ninguém que não me conhecesse como a “Menina Nua”. Depois passei alguns
anos como modelo, andei pelo Norte, pelo Sul e até a Lourenço Marques (hoje
Maputo) eu fui. Fiz de modelo para vários mestres, entre eles: Acácio Lino,
Joaquim Lopes, Dórdio Gomes, Sousa Caldas, Augusto Gomes, Camarinha e os
consagrados Henrique Moreira e Teixeira Lopes. Além da “Menina Nua”, estou no
Buçaco, no Cinema Rivoli, em Lisboa e em Moçambique... E hoje? Como vê, aqui
estou, desde os 43 anos cega, uma vida difícil de adaptação, um mundo escuro,
negro. E mais negro se tornou aquando da morte do meu marido. Fiquei
completamente só.
Hoje, passados alguns anos, tenho um casal a viver comigo, sempre me ajudam a pagar a renda e a fazer-me um pouco de companhia. Tenho umas ajudas do Centro de Dia da Terceira Idade, ligado ao Centro Social cá do bairro, onde vou almoçar e lanchar. Enfim, sempre ajuda a passar o tempo e a velhice. Mas o que eu mais desejava na vida, além de mais dinheiro para viver, era dos meus ricos olhos...» (Algumas lágrimas correram-lhe pelas faces, enquanto se preparava para ir almoçar ao Centro.)
Hoje, passados alguns anos, tenho um casal a viver comigo, sempre me ajudam a pagar a renda e a fazer-me um pouco de companhia. Tenho umas ajudas do Centro de Dia da Terceira Idade, ligado ao Centro Social cá do bairro, onde vou almoçar e lanchar. Enfim, sempre ajuda a passar o tempo e a velhice. Mas o que eu mais desejava na vida, além de mais dinheiro para viver, era dos meus ricos olhos...» (Algumas lágrimas correram-lhe pelas faces, enquanto se preparava para ir almoçar ao Centro.)
Despedi-me dela, tentando consolá-la com frases de carinho e amizade, mas a
vida é um cão que não conhece o dono… Ela despediu-se (nessa altura), com um
bom dia, entrecortado com um sorriso morgaiato, misto de Ribeira, Bonfim e
Pasteleira...
Aurélia Magalhães Monteiro, a Lela, a Lelinha ou a “Ceguinha do 9”, faleceu no dia 2 de Junho de 1992, com 82 anos de idade. No entanto, a “Menina Nua” continua viva, fixa e eterna, ali na Avenida dos Aliados, envolta nos nevoeiros citadinos, perpétua e ardente, nos dramas e vitórias deste povo.
Do livro "Pasteleira City", de Raul Simões Pinto – Edições Pé de
Cabra – Fevereiro de 1994
(com ligeiras adaptações)
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