© Todos os direitos reservados

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

ONTEM COMO HOJE, TIRANIA OU DEMOCRACIA, O DILEMA...


FERNANDO CAMPOS é um dos mais extraordinários autores portugueses da actualidade. Um dos meus preferidos. A sua prosa é límpida e escorreita. Ímpar. Ler Fernando Campos é esquecer a realidade e entrar no mundo fabuloso das palavras e dos enredos.

Neste momento estou a ler «Pedra Branca», o seu mais recente romance histórico, cujo âmbito cronológico da acção vai dos finais do século VII à primeira metade do século VI a. C., e no qual a poetisa Safo de Lesbos é a personagem principal. Um livro que recomendo não só pela sua beleza de escrita, como pela riqueza do conteúdo histórico.

Entretanto, seguindo a minha leitura, na página 47, deparei-me com o discurso do rei de Mitilene, que provocou o exílio de Safo, a conspiradora.

E não sei porquê (talvez vocês possam dizer-me), encontrei neste discurso algo que me trouxe aos tempos de hoje. E pensei: o que mudou em todos estes séculos? Este discurso pode ser proferido por qualquer um dos nossos actuais governantes. Ou poderia dizê-lo Salazar.

E eis que me deixou um dilema, que gostaria de partilhar convosco.

«(...)

Um dia Pítaco convoca os cidadãos para a agora. (...) Ele avança três passos no patamar até à beira da escadaria, levanta a mão e fala:

– Cidadãos de Mitilene! A nossa liberdade está em perigo. Um grupo de conspiradores ousou urdir na sombra a morte do vosso rei e a perda da cidade. Vejo-me constrangido a expulsar de Lesbos todo esse bando de perigosos malfeitores. Alcei-me ditador para que não mais haja nesta terra ditadura. Não renegaremos os deuses, velaremos pela salvação da pátria e pela segurança de todos vós. É na tirania que se funda a verdadeira democracia. De que serve a soma de opiniões dos homens cultos, se, numa assembleia, as suas ideias divergem, tal como na taberna se entrechocam as dos ignorantes no calor do vinho e das paixões? Sim, dir-me-eis, é preciso educar o povo. É verdade. Mas, quando toda a gente possuir o dom da sabedoria, todos continuarão a opinar diversamente e democracia corre o risco de ser sinónimo de anarquia...

Só sereis felizes se fordes governados por um rei absoluto. A causa de todos os males está na democracia, no governo da maioria. Quando o poder está na mão de um tirano, ele sabe que tem de satisfazer a muitos. Se muitos governam, não pensam senão em satisfazer-se a si próprios e surge então a mais hipócrita das tiranias, a tirania rebuçada de liberdade. Para obviar a esse perigo, cumpre pôr ordem nos tribunais, nas assembleias do povo, no exército, nas ruas, disciplina nas escolas, estabelecer normas de convivência. Criarei uma guarda pessoal que vigilará pela minha e vossa integridade, que o mesmo é dizer pela integridade do estado. Serão homens especialmente treinados. Ninguém conhecerá os seus rostos nem os seus nomes. Estarão em todo o lado, secretos, invisíveis, atentos e zelosos. Serão os meus olhos e ouvidos. Ide em paz. Sois livres de nada conceber e atentar contra o vosso rei e a vossa pátria...»

in «Pedra Branca»,  Fernando Campos (Editora Objectiva)

Sem comentários:

Enviar um comentário