FERNANDO CAMPOS é um dos
mais extraordinários autores portugueses da actualidade. Um dos meus preferidos.
A sua prosa é límpida e escorreita. Ímpar. Ler Fernando Campos é esquecer a
realidade e entrar no mundo fabuloso das palavras e dos enredos.
Neste momento estou a ler
«Pedra Branca», o seu mais recente romance histórico, cujo âmbito cronológico
da acção vai dos finais do século VII à primeira metade do século VI a. C., e no
qual a poetisa Safo de Lesbos é a personagem principal. Um livro que recomendo
não só pela sua beleza de escrita, como pela riqueza do conteúdo histórico.
Entretanto, seguindo a minha
leitura, na página 47, deparei-me com o discurso do rei de Mitilene, que
provocou o exílio de Safo, a conspiradora.
E não sei porquê
(talvez vocês possam dizer-me), encontrei neste discurso algo que me trouxe aos
tempos de hoje. E pensei: o que mudou em todos estes séculos? Este discurso
pode ser proferido por qualquer um dos nossos actuais governantes. Ou poderia
dizê-lo Salazar.
E eis que me deixou um
dilema, que gostaria de partilhar convosco.
«(...)
Um dia Pítaco convoca
os cidadãos para a agora. (...) Ele avança três passos no patamar até à beira
da escadaria, levanta a mão e fala:
– Cidadãos de Mitilene!
A nossa liberdade está em perigo. Um grupo de conspiradores ousou urdir na
sombra a morte do vosso rei e a perda da cidade. Vejo-me constrangido a expulsar
de Lesbos todo esse bando de perigosos malfeitores. Alcei-me ditador para que
não mais haja nesta terra ditadura. Não renegaremos os deuses, velaremos pela
salvação da pátria e pela segurança de todos vós. É na tirania que se funda a
verdadeira democracia. De que serve a soma de opiniões dos homens cultos, se,
numa assembleia, as suas ideias divergem, tal como na taberna se entrechocam as
dos ignorantes no calor do vinho e das paixões? Sim, dir-me-eis, é preciso
educar o povo. É verdade. Mas, quando toda a gente possuir o dom da sabedoria, todos
continuarão a opinar diversamente e democracia corre o risco de ser sinónimo de
anarquia...
Só sereis felizes se
fordes governados por um rei absoluto. A causa de todos os males está na
democracia, no governo da maioria. Quando o poder está na mão de um tirano, ele
sabe que tem de satisfazer a muitos. Se muitos governam, não pensam senão em
satisfazer-se a si próprios e surge então a mais hipócrita das tiranias, a
tirania rebuçada de liberdade. Para obviar a esse perigo, cumpre pôr ordem nos
tribunais, nas assembleias do povo, no exército, nas ruas, disciplina nas
escolas, estabelecer normas de convivência. Criarei uma guarda pessoal que
vigilará pela minha e vossa integridade, que o mesmo é dizer pela integridade
do estado. Serão homens especialmente treinados. Ninguém conhecerá os seus
rostos nem os seus nomes. Estarão em todo o lado, secretos, invisíveis, atentos
e zelosos. Serão os meus olhos e ouvidos. Ide em paz. Sois livres de nada
conceber e atentar contra o vosso rei e a vossa pátria...»
in
«Pedra Branca», Fernando Campos (Editora
Objectiva)
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