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sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

A PAIXÃO GREGA

 



Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,

 quando alguém morria perguntavam apenas:

 tinha paixão?

 Quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:

 se tinha paixão pelas coisas gerais,

 água,

 música,

 pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,

 pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,

 paixão pela paixão,

 tinha?

 E então indago de mim se eu próprio tenho paixão,

 se posso morrer gregamente,

 que paixão?

 Os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,

 os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,

 homens e mulheres perdem a aura

 na usura,

 na política,

 no comércio,

 na indústria,

 dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,

 trémulos objectos entrando e saindo

 dos dez tão poucos dedos para tantos

 objectos do mundo

 e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,

 pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,

 e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,

 palavra soprada a que forno com que fôlego,

 que alguém perguntasse: tinha paixão?

 Afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,

 ponham muito alto a música e que eu dance,

 fluido, infindável,

 apanhado por toda a luz antiga e moderna,

 os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão

 e eu me perdesse nela

 a paixão grega…
 
Herberto Helder

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