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Entre essa pequena multidão, encontrava-se um menino mutilado, sem as suas duas pernas, sentado no chão seco e poeirento, à beira do rio, observando Oskar com uns olhos grandes, negros, profundos, e imensamente tristes.
Olhos de ver. De sentir. De indagar. Já sem brilho e sem vontade de implorar o que quer que fosse. Olhos, onde a tristeza, ela própria, se encontrava encurralada. Olhos que apenas observavam Oskar, fixamente.
Com ele encontrava-se um outro menino, só pele e osso, dono de uns olhos também enormes, negros e tristes, que igualmente fitavam, sem expressão, o jornalista. Mastigavam ambos umas folhas que, com um ar absorto, iam arrancando de um arbusto rasteiro, que revestia a margem do rio. Impressionado com estes olhares cravados no seu, como punhais, Oskar abriu caminho por entre a multidão e aproximou-se deles. Então, o menino mutilado sorriu, o sorriso dos inocentes, daqueles que nada têm a perder, porque nada mais têm do que o próprio destino, incerto mas deles. Oskar curvou-se e, segurando na mão daquele menino, perguntou-lhe:
– Diz-me, por que comes essas ervas cheias de pó?
E o menino respondeu:
– São ervas dormideiras. Como-as, porque fazem-me dormir. E eu gosto de dormir. Queria dormir… dormir… dormir… sempre… É bom dormir!
– Dormir será assim tão bom, que justifique comeres essas ervas sujas, poeirentas e, com certeza, de sabor amargo?...
– As ervas são azedas, sim, mas é bom dormir! Eu queria estar sempre a dormir, porque quando durmo, sonho. E nos meus sonhos, tenho as minhas duas pernas. Posso andar, posso correr, posso ir para todo o lado, procurar o que comer, subir às árvores, colher papaias, fugir das armas que me perseguem, esconder-me dos guerrilheiros. E até jogar à bola. Sou feliz, quando sonho. Sou inteiro nos meus sonhos. Quando estou acordado, tenho de me arrastar pelo chão, como um lagarto, e não é a mesma coisa... É?... Neste tempo do verbo ser – é? – interrogativo e monossilábico, pronunciado de um modo que condenava o mundo inteiro, o menino, visivelmente mutilado também na alma, deixou-nos perturbados, especialmente Oskar, que foi possuído por uma revolta imensa. E olhando-o bem no fundo daqueles olhos negros, onde a tristeza estava encurralada, disse-lhe:
— Ouve bem, meu rapaz, não posso devolver-te as tuas pernas. E tu não podes viver no teu sonho, a dormir, o resto dos teus dias. Haveremos, juntos, de encontrar uma solução para a tua vida – Oskar pensava numas próteses que, mais tarde, cumprindo a promessa, ofereceu ao menino – Entretanto, ouve bem: se alguém, algum dia, te chamar de burro, não te ofendas, que de burro nada tens, a não ser a dignidade, por isso, diz-lhes que vale mais a dignidade de um burro, do que a falta de carácter desses homens feitos bestas, que te arrancaram as pernas, e com elas a possibilidade de viveres fora dos teus sonhos…
Segurando, depois, na mão do menino-pele-e-osso, perguntou-lhe;
— E tu, por que comes tu estas ervas? Também por causa dos sonhos?
E o menino, mostrando já uma certa sonolência, respondeu:
— Não… Eu… não sonho muito… Mas enquanto durmo, não sinto fome… E nas poucas vezes em que sonho, tenho sempre também o que comer…
— Há sempre o que comer nos sonhos… Os sonhos. Sempre os sonhos…O último refúgio dos que perderam a esperança… – balbuciou Oskar, mais para ele próprio, do que para ser ouvido.
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Excerto do Capítulo 4 do livro «A HORA DO LOBO» © Josefina Maller (a aguardar publicação)
Primeiro conto da Trilogia das Horas
(Deambulações de um homem lúcido por um mundo mais desordem do que ordem, ou o delírio de um nefelibata e os seus discursos impróprios, seguidos de caos)
«Se Deus tivesse falado…»
Há 2 dias
Escrita bela e vibrante.
ResponderEliminarSaúde.
Obrigada Francisco, pela sua visita e pelas suas palavras.
ResponderEliminarÉ bom, quando aparece alguém para iluminar esta minha Galatea.