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quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

MENSAGEM DE UM PACIFISTA SÁBIO


A religião da não-violência não é só para os santos,
é também para os homens comuns.

É a lei da nossa espécie, assim como a violência
é a lei do bruto.

A dignidade do homem procura uma lei mais elevada:
a força do espírito...

Não-violência não é submissão benévola ou malévola.

Não-violência opõe toda a força da alma à vontade do
tirano!

Um único homem pode assim desafiar um império
e provocar a sua queda.

                                                   Mahatma Gandhi


Foto © Josefina Maller

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

DOLÊNCIA...




Vem, noite, vem...

Acolhe-me entre os teus braços,

Para que ninguém saiba que chorei...


Texto e Foto © Josefina Maller

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

SONHOS...



Os sonhos são como flores esquecidas na planície

Que ao menor sopro do vento emurchecem

E nem o Sol, nem as brisas suaves, que sopram do Sul

Conseguem fazer renascê-las...

E a terra absorve a sua seiva, transformando-a no húmus

Que alimentará outras vidas.

E ali ficam os sonhos, enterrados na planície,

Esquecidos,

Perdidos para sempre...


Texto e Foto © Josefina Maller

terça-feira, 30 de novembro de 2010

DESACERTO...




Não sou,

Não sei,

Não vou,

Não quero...


Não quero que saibas.

Não quero que fales.

Não quero que grites.

Não quero que vejas.

Não quero que sintas.

Não quero...

Quero apenas que ouças

O que tenho para dizer...


© Josefina Maller (foto e texto)

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

TEMPESTADE...



Solitariamente,
a noite chora
e chove lágrimas
e suspira dores
e grita ventanias...



As estrelas estremecem e,
com medo,
a Lua apaga-se...

© Josefina Maller

Web site desta imagem: magopatologico.wordpress.com

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

ROSA DO DESERTO...



A manhã irrompeu ensanguentada,


cobrindo o deserto de flores escarlates.

Entre elas, colhi a mais bela,

para te oferecer,

a ti,

minha amada...

Oskar Kapriolo


in «A Hora do Lobo» © Josefina Maller (a aguardar publicação)

Web site da imagem: flores.fotosblogue.com

terça-feira, 16 de novembro de 2010

EXCERTO DO PRIMEIRO DISCURSO IMPRÓPRIO DE OSKAR KAPRIOLO


A vida ensinou-me que «ao mar o que é do mar, à terra o que é da terra, à floresta o que é da floresta. O homem rouba, a Natureza reage». Esta é uma lei natural inscrita nas entrelinhas do gigantesco livro cósmico, e que a falta de lucidez e a cegueira mental do homopredador nunca permitiram que lesse.


É chegada a hora de ouvir os apelos do planeta enfermo, que chora nas tempestades; que vomita nas erupções vulcânicas; que vocifera no uivo dos ventos; que estrebucha nos tremores de terra; que submerge nos maremotos; que arde nos lumes que a Natureza incendeia. Não serão suficientes estas advertências para vos aperceberdes do início da revolta do Ar, da Água, da Terra e do Fogo? Que cegueira é essa que vos ofusca para só verdes ourama à vossa frente? Atentai nas ameaças que nos atormentam: o abate desordenado de árvores; a erosão dos solos; o excesso de pastoreio, o abuso da caça e da pesca; a contaminação das águas; o extermínio de seres válidos, apenas pelo prazer ou pela conveniência inútil da exterminação.

Primeiro, o homem destrói tudo, indiscriminadamente, ao seu redor, em nome do malfadado progresso, do ilusório bem-estar e da falaciosa opulência. E a Natureza, desse modo violentada, ferida na delicadeza e na generosidade com que nos entrega as suas oferendas, reage, e ela própria provoca os seus estragos, através de tempestades, inundações, fogos, terramotos, maremotos. Depois, os indivíduos, verdadeiramente desesperados, decretam: «É proibido caçar, é proibido pescar, é proibido poluir... É preciso plantar árvores. É urgente proteger a Natureza…». E apressam-se a inventar slogans: «Ajudem o futuro: salvem as árvores!» «Por um planeta mais azul...!»

No entanto, é mais urgente aprender uma nova ética: a ética do ser, para isso a educação e o ensino devem centrar-se na formação desse ser, e não expressamente na acumulação de conhecimentos, muitos deles completamente inúteis. Instruir não é educar. Educar é preparar para a Liberdade. E Liberdade não é o mesmo que Libertinagem.

...

in «A HORA DO LOBO» © Josefina Maller (a aguardar publicação)

Web site da imagem: amigosdosanimaisnv.blogspot.com



segunda-feira, 15 de novembro de 2010

SORRINDO AO ENTARDECER...



As águas fugiam do meu ser

e sozinha fiquei

na margem do rio
sorrindo

ao entardecer...



       Josefina Maller

terça-feira, 2 de novembro de 2010

NOTAS PARA UMA REFLEXÃO SOBRE A INTERFERÊNCIA DO HOMEM NA VIDA DO PLANETA




NOTA PRIMEIRA


Depois de criado o Céu, e de separadas as águas da terra, e de a luz ter alternado com as trevas, e de as estrelas iluminarem o firmamento, e de o Sol e de a Lua distinguirem os dias das noites, vieram as plantas de todas as espécies, desde os mais frondosos embondeiros, à mais pequenina e frágil flor da planície, e nasceram então os verdes prados e os silenciosos bosques.

Vieram depois os animais marinhos, igualmente de todas as espécies, e coloriram as profundezas do mar.

Vieram as aves, aladas, e dominaram as alturas. Vieram todos os animais terrestres, desde os mais fortes, às mais delicadas borboletas.

E só depois de todas as criaturas terem experimentado, por uns breves tempos, uma vivência pacífica, num paraíso feito de harmoniosa beleza, surgiu, por fim, o homem, que não veio só. Com ele veio também aquela que, dali em diante, daria vida à vida – a mulher.

E este foi o início do caos.

© Josefina Maller

Origem da foto: http://www.meupapeldeparedegratis.net/fantasy/pages/lost-paradise.asp

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

DEPOIS DAS NUVENS, FEBO…



As nuvens, espessas e apressadas, chegam e atravessam o ar, carregado de escuridão e energias, ocultando o Sol, no seu Olimpo.


Assobia o vento, colérico, entre o casario. Brilhos fugazes rasgam os céus e os trovões ecoam, aterradores. As águas, cativas, saturadas do seu destino, lançam-se do espaço, transformadas em cataratas de chuva que, num ápice, das ruas fazem rios.

Nos jardins, as árvores dançam a dança do vento passageiro, que vem e não fica. A folhagem, humilde e insegura, desgarra-se dos troncos e cai, juntando-se às pequenas e delicadas flores que, esmagadas pela força da chuva, se desfazem num húmus, fecundo e perfumado. Um cheiro a terra húmida levanta-se do chão e entranha-se na cidade.

Inicia-se a batalha dos deuses contra os titãs. Uns e outros poderosos. E o mais poderoso de todos, o Grande Espírito, desce dos céus para reinar sobre a Terra, numa fugaz tempestade, porque é preciso lembrar aos homens de que há uma Natureza mais forte do que o frágil poder deles.

Por detrás das vidraças, olhos assombrados espreitam o desconcerto da tormenta que se abate sobre a cidade.

O dia faz-se noite. Nas ruas desertas, correm águas revoltas e barrentas. O vento, que é invisível, mostra-se agora, distintamente, no torvelinho que desce a rua. Rasgando os céus, cintilam os lumes provocados pela colisão das nuvens que, espessas e apressadas, continuam a atravessar o ar, e troadas tenebrosas dilaceram a inquietude das almas, nelas se instalando um medo indizível.

Todavia, não temeria sempre o homem tudo o que desconhece ou não pode controlar?

...

Lentamente, quase imperceptivelmente, o Grande Espírito abandona a Terra, deixando os homens com a fraqueza deles.

Deuses e titãs regressam às infinitudes do Universo.
As águas esgotam-se, na sua nascente.
As nuvens, espessas e apressadas partem, levando-as o vento, passageiro, que veio e não ficou.
A cidade, ainda molhada, abre-se novamente para o dia.

Depois das nuvens, Febo…(1) particularmente fulgurante...

(1) Post nubila Phoebus – Depois das nuvens, Febo (o Sol); depois da tempestade a bonança (locução latina).

in «Os Dias de José... e outras Narrativas» (a aguardar publicação)

Texto e foto © Josefina Maller

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

MELANCOLICAMENTE AS MIMOSAS FLORIRAM...



Naquele domingo,

a chuva molhava

a paisagem...



Melancolicamente,

as mimosas floriram

colorindo a

tempestade

medonha

que fustigava

os seus ramos...


E eu,

enternecida,

deixei-me embalar

pelo vento

salpicado de

pequeninas flores

amarelas...


© Josefina Maller



segunda-feira, 11 de outubro de 2010

NO CORAÇÃO DAS COISAS…



Impõe-se saber que homem é este que, conduzido pelo instinto, seguiu um caminho desconhecido, em busca de algo que não podia sequer imaginar, e que acabou por envolvê-lo numa intrigante aventura, talvez real ou provavelmente fruto de uma alucinação, provocada por uma hipotética revolta dos elementos, engendrada no seu subconsciente.

A narrativa que se segue é sobre a experiência e o testemunho daquele que sobreviveu ao tédio do Universo; e diz, igualmente, do seu pensamento e dos seus discursos impróprios, seguidos de caos.

Esta é, enfim, a gesta de Oskar Kapriolo.

Atrevo-me a contá-la, ainda que contra a vontade do próprio Oskar, receoso de que a sua história possa ser interpretada como mais uma daquelas ficções inverosímeis, que se forjam para entreter as mentes e afastá-las do essencial, do urgente, daquilo que na realidade interessa, ou seja, da tão ansiada reconstrução do mundo, para que possamos regressar ao paraíso primordial. No entanto, estou disposta a correr esse risco, até porque num mundo onde todas as coisas acontecem não por acaso, viajar pelo interior, ainda que de uma alucinação, afigura-se-me uma façanha verdadeiramente fascinante. E, além de me deleitar com uma boa aventura, agrada-me decifrar os enigmas que, eventualmente, essa aventura possa proporcionar-me.

Por outro lado, conheço Oskar há longo tempo. Desde o tempo em que ambos trabalhávamos no mesmo jornal. Segui-o pelo mundo, profissionalmente (é imperioso dizer), registando em imagens o que ele ia construindo com palavras. Eu era a “sua” fotógrafa, mas também a sua confidente e cúmplice, nas horas difíceis, quando as coisas aviltantes de um mundo, em franca derrapagem, o esmagavam a ele, tanto quanto a mim.

Mais tarde, já numa outra fase da sua vida profissional, quando se tornou um escritor famoso, Oskar pediu-me para que continuasse a acompanhá-lo nas suas viagens, com a finalidade de registar imagens e gravar os seus discursos, as suas intervenções, os improvisos que ia proferindo, durante as inúmeras digressões que realizou por todos os continentes. Por isso, sei do seu pensamento, dos seus ideais, de como subitamente pode fazer jorrar palavras que parecem não ter qualquer propósito e, no entanto, se tivermos a capacidade de penetrar nos interstícios dessas palavras, que Oskar deixa suspensas entre reticências, pontos de interrogação e de exclamação, ele lá está, o desígnio de tudo, oculto entre duas linhas, ou discretamente grifado numa qualquer silabazinha, humilde e escorreita, que, ninguém como ele, sabe esboçar.

Um dia, na cidade do Cairo, enquanto observávamos, horrorizados, o corpo desfeito de uma bombista-suicida, à porta do hotel onde estávamos hospedados, e que, só por milagre, também não nos atirou para os braços de Hades, Oskar murmurou, ao jeito de um poeta, com um ar circunspecto, ajustado à ocasião, olhos postos no longe, e uma voz vagarosa e afectiva, que era a dele:

— Sabes, Norah, no coração das coisas há sempre a esperança de vermos brotar a flor da rosa, ainda que essa flor se pareça com o vento que passa veloz, deixando-nos apenas um rasto de perfume agreste. No entanto, se por alguma casualidade, a esperança se desvanecer, o perfume agreste do vento permanecerá na flor, por toda a eternidade. E neste pequeno detalhe é que está o grande mistério que faz mover o mundo…

Ainda hoje procuro o sentido desta reflexão enigmática, proferida diante dos despojos ensanguentados daquela que talvez tivesse sido uma bela mulher, embora animada por um espírito obscuro.

No entanto, não foi para encontrar o sentido dessas palavras que me propus a escrever este livro, até porque a escrita de um livro não se justifica. Escreve-se e ponto final. Contudo, poder-se-á perguntar: porquê a gesta de Oskar Kapriolo? A esta pergunta o próprio Oskar responderá, mais adiante.

Quanto a mim, direi que talvez seja pelo perfume agreste que permanece na flor da rosa, que Oskar encontra no coração das coisas, e eu sinto no ar que respiro, e que tanto me fascina, facto que, por si só, possivelmente, bastasse para justificar o livro.

Todavia, posso adiantar que o motivo não será propriamente este. Por agora, tentarei contar a história de Oskar, palavra a palavra, parágrafo a parágrafo, página a página, até ao desfecho do enredo que, inesperadamente, o envolveu como a teia da aranha envolve a mosca. Para tal, socorri-me do material que tinha à minha disposição: as gravações das conferências proferidas por Oskar e dos seus discursos improvisados, considerados impróprios, pelos seus opositores mais obstinados; conversas e confidências por ele autorizadas; páginas das suas Notas de Viagem e do seu Diário que, devo confessar, muito a custo, me foi consentido consultar; as minhas próprias vivências com o escritor e, evidentemente, os Andamentos de um percurso, ou talvez os delírios de Oskar, narrados pelo próprio, no jardim da sua amada Matilde.

Ou não seriam delírios?...

in «A HORA DO LOBO» © Josefina Maller (a aguardar publicação)


Web site da imagem: internacionalizzando.blogspot.com



terça-feira, 21 de setembro de 2010

QUANDO EU MORRER, AS ROSAS CONTINUARÃO A FLORIR…




Arrastou-se pela vida até ao derradeiro dia.


Viveu cada minuto da sua existência tão intensamente como se fosse o último. Tinha um jeito peculiar de contemplar o mundo. Via-o através de um olhar arrebatado, carregado de melancolia. Era uma criatura silenciosa, afável, solitária. Amava as árvores, as flores, particularmente as rosas, e os animais com um amor grande. Imensurável.

Amava, de igual modo, também as palavras, a causa maior de todas as suas mágoas, de todos os seus desencantos, de todas as suas frustrações, de todos os seus desencontros, de todos os seus desamores, porque a palavra da mulher não palpita, diziam-lhe os homens, seus ímpares na escrita que, na verdade, não sabem, nem nunca souberam coisa alguma acerca do universo da mulher, tão repleto de imponderáveis.

Por vezes, sentava-se num rochedo, à beira-mar e, embalada pelo sussurro das águas, escrevia versos, que lançava às ondas, para que estas os arrastassem até lonjuras inatingíveis. Versos que só a ela diziam respeito, e que com ninguém mais partilhava, à excepção do grande oceano.

Quando não se sentia inspirada, distraía-se a escutar o crocitar das gaivotas, que lhe contavam segredos do mar: lá no fundo, havia um mundo, e nesse mundo vivia um príncipe solitário, num palácio de vidro, onde o destino o mantinha prisioneiro, há séculos, esperando que uma bela donzela viesse libertá-lo. Poderia ser ela, essa donzela libertadora, se fosse bela, ou se soubesse como chegar a esse palácio submerso. Como não era bela e também nada sabia dessas profundezas, limitava-se a lançar às águas os seus sonhos, os seus versos e cantava baixinho enternecedoras melodias de amor, na esperança de que esses sonhos, esses versos e esses cânticos chegassem àquele mundo que havia lá no fundo, e pudesse libertar o príncipe solitário.

O seu quotidiano era feito de muitos pequenos nadas. Coisas que para os outros eram insignificantes, mas que para ela eram o cerne da sua existência. E em tudo o que fazia, as palavras estavam presentes. Palavras que diziam do bem, do bom e do belo que a vida encerra, e poucos eram os que sabiam desbravá-las. Tinha um sorriso afectuoso, que incorporava às palavras e distribuía pelas ruas como se de panfletos se tratasse.

Contudo, ninguém estava interessado nas suas palavras. No seu sorriso complacente. O mundo tornara-se um lugar de urgências, cheio de gente vazia e apressada, onde viver era caminhar para o nada, passo a passo.

Ela arrastava-se por esse mundo esvaziado, carregando todas as suas palavras às costas, não como se carregasse um fardo, mas como se transportasse o destino do próprio mundo.

Até que um dia, a melancolia que sempre a acompanhou, degenerou em tristeza, e a tristeza se não é aplacada, torna-se fatal.

Quando a encontraram em casa, sem vida, sentada na sua cadeira de verga, junto à roseira que guardou tantos dos seus segredos, entre as suas mãos jazia um caderninho de capa amarela, onde estavam escritas aquelas que foram as últimas palavras que deixou ao mundo, em jeito de despedida, e que, afinal, resumiam a sua ideia de eternidade: Quando eu morrer, as rosas continuarão a florir…

in «Os Dias de José... e outras narrativas» © Josefina Maller (a aguardar publicação)
Foto © Josefina.Maller

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A BELEZA DAS COISAS…


Um monte

As verdes ervas do monte...
Pequenos arbustos crescem
aqui e ali...

Uma árvore florida
Ergue-se solitária
No cimo do monte...

As aves
Sobrevoam em liberdade
Os arbustos
A árvore florida
E o monte...

Nuvens deslizam
Suavemente no céu tão claro
E o Sol espreita mais fulgurante
Do que nunca
Este cenário simples
Onde simplesmente
A beleza
Acontece…


Texto e Foto © Josefina Maller

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O FAUNO...



Não esperei que a Lua me contasse os segredos da noite...


Não esperei que as estrelas cantassem serenatas ao luar...

Não esperei que os pirilampos incendiassem o escuro...

Não esperei que as aves nocturnas suspirassem de amor...

Não esperei que Vénus se apagasse...

Não esperei que viessem os ventos açoitar as árvores...

Não esperei que as águas dos rios transbordassem...

Não esperei que as nuvens passassem ligeiras...

Não esperei...

Já vou a caminho...

Fauno, protector dos bosques, das águas e das montanhas
pressentiu a minha ânsia de infinito e veio propor que o seguisse...

Já vou a caminho...

© Josefina Maller

Web site da imagem: pinocchio.it
Estátua de Fauno, no Giardino Garzoni (Itália)



terça-feira, 31 de agosto de 2010

A ÁGUIA NÃO APANHA MOSCAS…




Era uma cidade onde todos se conheciam.


As Moscas, que a governavam, eram pequenas, física e mentalmente. Não tinham honra, nem bom-nome. Praticavam actos que causavam danos, humilhação, tristeza e agastamento aos cidadãos, perturbavam a sua satisfação e o seu contentamento, bem como o seu humor e disposição, por isso, não tinham ética, nem sabedoria, nem lealdade, nem generosidade, e muito menos coragem. Qualidades dos bons dirigentes.

Lao Tzu, o grande Mestre de uma também grande civilização que floresceu na China, por volta de 600 a. C., ensinou-nos que os líderes deveriam governar um grande país com o mesmo cuidado com que se cozinha um pequeno peixe, e dar provas de humanidade, de compaixão e de mercê, considerando tudo isto como um sinal do verdadeiro poder.

Mas nada disto imperava naquela cidade onde todos se conheciam.

Um dia, uma Águia, que ali vivia e se dedicava à escrita, escreveu um artigo para um jornal, sobre a podridão daquela governação, e sobre a corrupção e o abuso de poder que ali reinavam. Todos o sabiam. Todos o diziam. Todos, em privado, chamavam ladras às Moscas, que governavam.

Contudo, um dia, a Águia atreveu-se a dizê-lo em público e foi processada pelas Moscas que governavam, e imputaram-lhe a prática de crimes de difamação agravada. Agravada porque os visados eram Moscas da administração pública. Se fossem honrados varredores de rua, com bom-nome, a difamação já não seria agravada. As tais Moscas ofendidas eram corruptas e ladras, mas não podia dizer-se isto em público. Apenas em privado, em surdina. Todavia, o rumor desses epítetos inundou a cidade como uma onda de mar.

A Águia, por dizer essas verdades em público, foi condenada a uns tantos dias de multa, por atentado contra a honra e o bom-nome das intocáveis Moscas; e por ter perturbado a satisfação e contentamento, bem como o humor e disposição dessas Moscas. Além da multa, a Águia foi também condenada a pagar uma indemnização às ofendidas, para lhes proporcionar conforto, compensando, por este único modo possível, perdas efectivas e outras situações de grande sofrimento. De grande sofrimento. Pasme-se!

Perante esta sentença, questionou-se, em surdina, como pode ofender-se a honra de Moscas que, apesar de não terem honra, governam?

À Águia foi-lhe exigido um comportamento de irrepreensível urbanidade, cordialidade e civilidade na sua actuação para com as Moscas dirigentes.

Condenou-se a Águia, mas não se condenou as pequenas Moscas que governavam aquela cidade, onde todos se conheciam, e as quais não tinham nem honra, nem bom-nome, nem um comportamento de irrepreensível urbanidade, cordialidade e civilidade na sua actuação como indivíduos da administração pública.

Na verdade, a Águia não apanha Moscas (1) , porém, quando as Moscas extravasam as suas competências e submergem a verdade, a metamorfose da Águia é inevitável…



(1) Aquila non capit muscas – Um espírito superior não se preocupa com ninharias (locução latina).

in «OS DIAS DE JOSÉ... E outras Narrativas» © Josefina Maller (a aguardar publicação)

Web site da imagem: eccn.edu.pt







segunda-feira, 30 de agosto de 2010

SENTADA ÀBEIRA-RIO NO CHOUPAL...




Sentada à beira-rio no Choupal

Ouvi cantar as águas do Mondego

Cantigas de encantar às mouras belas

Que ali estavam cativas em segredo...


© Josefina Maller

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O CAMINHO...




Não sou pedra

Não sou flor

Nem água

Nem rio...



Não sou árvore

Não sou lago

Nem folha caída

Nem orvalho...



Não sou estrela

Não sou luar

Nem chuva

Nem Sol...



Não sou...!



Mas tenho um caminho

Onde há pedras, flores, águas e rios...

Árvores, lagos, folhas caídas e orvalho...

Estrelas, luar, a chuva e o Sol...



E tenho o vento que me leva

Até àquele infinito

Lá, naquele além,

Onde tudo termina

Para recomeçar...



Texto e fotografia © Josefina Maller

ACTO DE AMOR...





A flor nasce

para colorir

a tristeza do homem...




Mas a vida da flor

é efémera

assim como efémera

é a alegria do homem...


Porém

mais vale a felicidade breve

do que a tristeza perene...


Semear uma flor

para colorir a tristeza

do homem

é um acto de amor...


(Texto e fotografia © Josefina Maller)

terça-feira, 10 de agosto de 2010

LIBERTAÇÃO...



Languidamente


a lágrima solta-se

e o sorriso esconde-se

envergonhado...



Só então a mulher,

que à janela espera,

se dá conta de que

nas entrelinhas da vida

se abre o espaço

que há-de libertar

a sua tristeza...



© Josefina Maller

terça-feira, 3 de agosto de 2010

O MENINO...



Eu vi o menino nascer à beira do rio...


Eu vi o menino crescer nos becos da vida

Eu vi o menino ser abandonado na rua

Eu vi o menino sofrer ao ver a mãe caída no chão

Eu vi o menino nascer à beira do rio...

Eu vi o menino ser explorado

Eu vi o menino ser violado

Eu vi o menino esfomeado

Eu vi o menino a roubar pra comer

Eu vi o menino nascer à beira do rio...

Eu vi o menino na guerra

Eu vi o menino caído entre os escombros

Eu vi o menino ferido

Eu vi o menino a comer lixo

Eu vi o menino a beber água ao lado de um cão

Eu vi o menino nascer à beira do rio...

Eu vi o menino a definhar

Eu vi o menino a agonizar

Eu vi o menino a dirigir-se para o rio

Eu vi o menino morrer à beira do rio...

Eu vi o menino a ser devorado pelos abutres...


Eu vi...

O filme chamava-se “O Menino”...

O menino sem nome era o menino que eu vi nascer à beira do rio...

O menino que eu vi morrer à beira do mesmo rio...

Um menino que veio ao mundo, no nosso mundo...

Eu vi...

E agora que vi, sinto-me culpada: eu não estava lá...

segunda-feira, 26 de julho de 2010

CANTAR DE AMOR...



Suave é o voo da ave


Brando, o sussurro do mar...

Terno, o abraço do vento

Límpido, o teu olhar...



Ameno é o suspiro da Lua

Afável, o sorriso da flor...

Sedutora, a bruma do bosque

Eterno, o teu amor...

terça-feira, 20 de julho de 2010

«EM BUSCA DO AMANHECER QUANTA GENTE MORREU ENCOSTADA A UM MURO!…»

...
Entre essa pequena multidão, encontrava-se um menino mutilado, sem as suas duas pernas, sentado no chão seco e poeirento, à beira do rio, observando Oskar com uns olhos grandes, negros, profundos, e imensamente tristes.

Olhos de ver. De sentir. De indagar. Já sem brilho e sem vontade de implorar o que quer que fosse. Olhos, onde a tristeza, ela própria, se encontrava encurralada. Olhos que apenas observavam Oskar, fixamente.

Com ele encontrava-se um outro menino, só pele e osso, dono de uns olhos também enormes, negros e tristes, que igualmente fitavam, sem expressão, o jornalista. Mastigavam ambos umas folhas que, com um ar absorto, iam arrancando de um arbusto rasteiro, que revestia a margem do rio. Impressionado com estes olhares cravados no seu, como punhais, Oskar abriu caminho por entre a multidão e aproximou-se deles. Então, o menino mutilado sorriu, o sorriso dos inocentes, daqueles que nada têm a perder, porque nada mais têm do que o próprio destino, incerto mas deles. Oskar curvou-se e, segurando na mão daquele menino, perguntou-lhe:

– Diz-me, por que comes essas ervas cheias de pó?
E o menino respondeu:

– São ervas dormideiras. Como-as, porque fazem-me dormir. E eu gosto de dormir. Queria dormir… dormir… dormir… sempre… É bom dormir!

– Dormir será assim tão bom, que justifique comeres essas ervas sujas, poeirentas e, com certeza, de sabor amargo?...

– As ervas são azedas, sim, mas é bom dormir! Eu queria estar sempre a dormir, porque quando durmo, sonho. E nos meus sonhos, tenho as minhas duas pernas. Posso andar, posso correr, posso ir para todo o lado, procurar o que comer, subir às árvores, colher papaias, fugir das armas que me perseguem, esconder-me dos guerrilheiros. E até jogar à bola. Sou feliz, quando sonho. Sou inteiro nos meus sonhos. Quando estou acordado, tenho de me arrastar pelo chão, como um lagarto, e não é a mesma coisa... É?... Neste tempo do verbo ser – é? – interrogativo e monossilábico, pronunciado de um modo que condenava o mundo inteiro, o menino, visivelmente mutilado também na alma, deixou-nos perturbados, especialmente Oskar, que foi possuído por uma revolta imensa. E olhando-o bem no fundo daqueles olhos negros, onde a tristeza estava encurralada, disse-lhe:

— Ouve bem, meu rapaz, não posso devolver-te as tuas pernas. E tu não podes viver no teu sonho, a dormir, o resto dos teus dias. Haveremos, juntos, de encontrar uma solução para a tua vida – Oskar pensava numas próteses que, mais tarde, cumprindo a promessa, ofereceu ao menino – Entretanto, ouve bem: se alguém, algum dia, te chamar de burro, não te ofendas, que de burro nada tens, a não ser a dignidade, por isso, diz-lhes que vale mais a dignidade de um burro, do que a falta de carácter desses homens feitos bestas, que te arrancaram as pernas, e com elas a possibilidade de viveres fora dos teus sonhos…

Segurando, depois, na mão do menino-pele-e-osso, perguntou-lhe;

— E tu, por que comes tu estas ervas? Também por causa dos sonhos?

E o menino, mostrando já uma certa sonolência, respondeu:

— Não… Eu… não sonho muito… Mas enquanto durmo, não sinto fome… E nas poucas vezes em que sonho, tenho sempre também o que comer…

— Há sempre o que comer nos sonhos… Os sonhos. Sempre os sonhos…O último refúgio dos que perderam a esperança… – balbuciou Oskar, mais para ele próprio, do que para ser ouvido.

...

Excerto do Capítulo 4 do livro «A HORA DO LOBO» © Josefina Maller (a aguardar publicação)

Primeiro conto da Trilogia das Horas

(Deambulações de um homem lúcido por um mundo mais desordem do que ordem, ou o delírio de um nefelibata e os seus discursos impróprios, seguidos de caos)



terça-feira, 13 de julho de 2010

CAEM AS SOMBRAS DO ALTO DOS MONTES…



A árvore escuta o vento que, enfunado numa vela feita de trapos, habita num velho veleiro ancorado na margem.


A árvore escuta e cala.
O vento, enfurecido, por uma qualquer razão desconhecida, uiva, ruge, assobia, agita-se e agita as águas límpidas da Lagoa.

Uma garça cor-de-rosa tenta equilibrar-se, com elegância, na margem onde a árvore escuta o vento, e o veleiro aguarda que as águas o libertem.

Apesar de todo este tumulto, uma estranha quietude envolve o lugar.

Escondidos entre a folhagem, que a árvore lança para o chão, uns olhos espreitam. Uns olhos grandes e negros, profundos e melancólicos, que olham a agitação do lugar, com assombro.

A Lagoa é o seu mundo. A sua vida. O seu refúgio. O seu lugar de ser e de estar. Porquê esta metamorfose? Pela primeira vez, o vento, enfunado nas velas rasgadas do veleiro, invade os seus domínios. Sem cerimónia. Sem pedir licença. Com que direito? Nada parece fazer sentido. Há tanto tempo que aquele lugar é só seu! Só seu. E agora terá de o repartir, assim, deste modo tão inesperado e turbulento?

Uma ave misteriosa cruza os céus, e o seu voo reflecte-se nas águas claras e agitadas da Lagoa, nelas flutuando como um vulto fantasmagórico.

Caem as sombras do alto dos montes (1) sobre as pedras silenciosas que habitam este lugar, desde sempre. Aqui, os sonhos são deslumbramentos eternos como o próprio tempo. A estranha ave lança um gorjeio desatinado. Dá voltas e mais voltas ao redor da Lagoa.

Elegantemente, a garça cor-de-rosa continua o seu passeio, na margem, indiferente ao rebuliço do vento. Algo se passa. Mas o quê? O quê?...

Os olhos espreitam. Ainda. A árvore escuta e continua a lançar a sua folhagem avermelhada para o chão. O silêncio, que até então ali habitava também, é rasgado pelo uivo do vento. As sombras agitam-se. De onde virão as sombras? O que as agitará? O medo? O medo é redondo e vem vindo num turbilhão ilusório. A árvore, que escuta, não fala mas sente. Está triste. Nota-se a sua tristeza na ramagem que se verga até ao chão, onde continuam a espreitar aqueles olhos grandes e negros, profundos e melancólicos.

Subitamente, o vento emudece. A ave misteriosa abandona a Lagoa. A garça cor-de-rosa estende as suas asas magníficas, e parte também...

É então que o Outono se mostra, esplendoroso.

E são os olhos do entardecer que o acolhem, com melancolia…



(1) Cadunt altis de montibus umbrae – Pôs-se o Sol; é noite; anoitece (locução latina).

in «OS DIAS DE JOSÉ – e Outras Narrativas» © Josefina Maller (a aguardar publicação)

sexta-feira, 2 de julho de 2010

LUTO PELA TERRA...



A terra secou.


Secaram os meus olhos...

Não tenho mais lágrimas

Para a irrigar...

As plantas murcharam

E eu emurcheci com elas...


Origem da imagem
http://fabianapaula.files.wordpress.com/2010/04/terra-seca.jpg


sábado, 26 de junho de 2010

A ORAÇÃO DO MACACO…



No primeiro dia, vieram uns e outros de todos os lados.

No segundo dia, vieram uns.
No terceiro dia, vieram outros.
No quarto dia, não veio ninguém.

No meio da praça vazia, tão vazia, que nem um cão se via, o Presidente, empoleirado no seu palanque dourado, não tinha a quem dirigir a palavra. Intrigou-se então o homem. Porquê, se no primeiro dia vieram uns e outros, de todos os lados, ouvir a conferência do cientista sobre o aquecimento global? Se bem que no segundo dia, sim, só vieram uns, assistir à dissertação do escritor sobre o Acordo Ortográfico; e, no terceiro, outros vieram para o sermão do padre acerca das bem-aventuranças. Mas no quarto dia, não vir ninguém ouvir o discurso do Presidente sobre o estado da governação? Ele que já era Presidente há tantos anos, e sabia das coisas! Era muito estranho. Ali havia gato! Um grande gato!

O Presidente ainda esperou algumas horas, sentado numa das cadeiras que havia no palanque. Talvez aparecesse alguém para o esclarecer daquele grande mistério. Nem um cão? Nem um pássaro? Ninguém para o ouvir? Estranho. Muito estranho.

O tempo passou, até que veio a noite. Entretanto, o Presidente adormeceu, sentado na cadeira. Parecia um falecido, à luz da Lua. O seu rosto estava branco. Os braços descaídos ao longo do repolhudo corpo. As pernas esticadas.

Foi assim que todos, vindos de todos os lados, o encontraram ao quinto dia. Um rumorejo percorria a praça, agora cheia de todos. Falavam por entre dentes. Perguntavam-se se o Presidente estaria morto. O que lhe teria acontecido? Ninguém se atrevia a falar alto. Ninguém se atrevia a aproximar-se. Ninguém se atrevia a coisa nenhuma. Limitavam-se a observar e a cochichar. Até que chegou Angélica, mais conhecida como a “casta Angélica”, que, muito ansiosa, foi abrindo caminho até ao palanque, por entre a multidão, estupefacta.

A “casta Angélica”, plantada nos seus sapatos altos, vermelhos, a condizer com um vestido florido, que deixava antever o que não era conveniente ver-se, subiu, com muita elegância, as escadinhas que conduziam ao palco, onde o Presidente continuava sentado na cadeira, como um falecido, e, delicadamente, tocou-lhe no ombro. O Presidente acordou estremunhado. Mais do que estremunhado, estremunhadíssimo, com uma expressão de terror desenhada no rosto, demasiado branco. Dir-se-ia estar diante de um fantasma.

Um e outro puseram-se então a dizer a oração do macaco (1), ou seja, a falar por entre dentes, para que ninguém ouvisse o que diziam. O Presidente, notava-se, estava apavorado. As palavras que trocavam, ninguém as ouvia, apesar do profundo silêncio que se fazia na praça. Contudo, podia deduzir-se o teor da conversa, pelas expressões comprometidas de ambos.

De súbito, a “casta Angélica” retirou-se do palanque com um sorriso disfarçado nos lábios pintados, a condizer com os sapatos vermelhos, e passou pelo povo, como cão por vinha vindimada.

Entretanto, o Presidente levantou-se, como se nada tivesse acontecido, ajeitou os cabelos e a gravata, apertou os botões do casaco, abeirou-se do microfone e quando ia a começar a falar houve uma debandada geral: todos os que, no quinto dia, vieram de todos os lados para ver o Presidente, que todos comentavam ter falecido, sentado na cadeira do seu palanque, retiraram-se, apressadamente, da praça.

Pasmado, o Presidente ficou novamente sozinho, em cima do palanque, na praça vazia, sem ter a quem dirigir o seu discurso sobre o estado da governação.

Nem, um cão! Nem um pássaro. Ninguém.


in «OS DIAS DE JOSÉe Outras Narrativas...» © Josefina Maller (a aguardar publicação)


(1) Dire l’orazione della bertuccia – Falar por entre dentes (locução latina).

Origem da imagem: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgzLk4LQ_PS9ocIR9wzgP1lWaTn2wS4sTx2cj8kAcSdKhxfZ77NtGoxWli9li6lom95rzhJ5iiyYRebv4dNwA7YOZsY84k8rAGAYzRxSrdUStHdOC7uKjEUb53ATHS6113qtWoKcX2FipE/s1600/macaco_rindo.jpg


sexta-feira, 18 de junho de 2010

JOSÉ SARAMAGO PARTIU...



José Saramago morreu?


Era bom carácter? Mau carácter? Era ateu? Incomodava? Era comunista? Polémico?
O escritor morreria de verdade?

A Literatura Portuguesa perdeu o homem, mas ficou com a sua obra. Uma obra maior. Polémica? Certamente. Se não fosse polémica não seria maior. Lugares comuns não entram para a História, nem para a eternidade.

Saramago morreu? Não!

No mundo ficaram as suas palavras imortais, que o tornam imortal.

Saramago não morreu.

Partiu para uma outra dimensão da sua existência, deixando-nos a lembrança de um homem que nunca esteve bem com o mundo nem com uma humanidade tão desumana...


(Origem da imagem)
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjHwsCKtP_IXfAkVsbOGiOfzBgkidf5x5OatjCHeKxM5Zaf19Q3FGECCNkjarcC2eiV1HldLAwktGOh88V0NpGcFt7ValhOEK9_mCriSDHeyOvzLr5JJiJedgV5gghFcqeJUWv81GCHmeg/s400/jose_saramago01.jpg

CANÇÃO DO VENTO E DA MINHA VIDA



(Um tributo a Manuel Bandeira, grande poeta brasileiro)



O vento varria as folhas,

O vento varria os frutos,

O vento varria as flores...

E a minha vida ficava

Cada vez mais cheia

De frutos, de flores, de folhas.



O vento varria as luzes,

O vento varria as músicas,

O vento varria os aromas...

E a minha vida ficava

Cada vez mais cheia

De aromas, de estrelas,

De cânticos.



O vento varria os meses

E varria os teus sorrisos...

O vento varria tudo!

E a minha vida ficava

Cada vez mais cheia

De tudo.

Manuel Bandeira

(Origem da imagem: http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/literatura/manuel_bandeira/imagens/retratoManuelBandeira.jpg

quarta-feira, 9 de junho de 2010

PRIMEIRO ANDAMENTO...


(OU O DELÍRIO PRIMEIRO DE OSKAR)

Maquinalmente, obedeci àquela ordem, por não ter outra alternativa, ou talvez tivesse simplesmente seguido o instinto que sempre norteou os passos da minha vida, impelindo-me para rumos, por vezes, impensáveis, diria mesmo, surrealistas, por onde me embrenhava, procurando alcançar o indefinível da existência, que sempre tanto me fascinou…


«Vai, segue o caminho do infinito. Nele encontrarás o arbusto-do-lobo, que te abrirá uma porta!» — aquela voz, profunda e poderosa, misteriosa e longínqua, ainda ecoava em mim.

Tudo começou à hora em que os pássaros regressam às árvores e adormecem. Um rugido terrível, oriundo das mais profundas e sombrias trevas, rasgou os meus ouvidos e atordoou todos os meus outros sentidos. Depois, aquela força incorpórea arrastou-me como o vento arrasta as folhas secas das árvores, no Outono, para aquele lugar longe e estranho, selvagem e ermo, onde havia um caminho traçado numa paisagem agreste, de onde a vida se ausentara, e apenas penhascos gigantescos, negros e sinistros, esguios como dedos acusadores, apontados para o alto, habitavam.

O caminho era arenoso. Hostil. Interminável. Medonho na sua nudez. De horizontes inatingíveis e indefinidos. E o vastíssimo deserto, que eram as suas margens, esmagava-me e causava-me uma sensação de subalternidade, como se eu não passasse de um minúsculo verme a rastejar por aquele chão poeirento, aos pés de gigantes implacáveis.

O peso daquele deserto doía-me como se carregasse sobre os ombros todos os grãos de areia de que era feito. Seria o mais árido de todos os desertos, cujas geografias, moldadas, talvez, há milhões de anos, por mãos hábeis e invisíveis, guardavam segredos que poderiam ser desvendados por quem se atrevesse a enfrentá-lo de corpo inteiro. Mas não certamente por mim, não nas minhas circunstâncias: um homem caído em desgraça. Eu, que conhecia quase todo o mundo habitado pelos homens, não sabia de um lugar assim. Ocorreu-me, então, que aqueles ventos enraivecidos que, naquela tarde, varreram a Terra, tivessem, talvez, me arremessado a um outro planeta, deserto e desconhecido, já destruído por outros seres tão desprovidos de bom senso como os povos terrestres.

Provavelmente, aquele deserto já fora um lugar verde, coberto de ciprestes, que vivem eternidades, e de pequenos arbustos, plantas também eternas, que deviam torná-lo apetecível à vida, ainda que a uma vida subterrânea, nocturna, como é próprio das areias. No entanto, à época desta minha desventura, aquele era um verdadeiro lugar de morte, pior ainda, um lugar de uma solidão indizível, daquelas que nos condena a rastejar como vermes, de tanto que nos esmaga. O silêncio cingia-o, como a cobra abraça a sua presa, e era algo extraordinário, rasgado por uns estranhos rumores, que se assemelhavam a gemidos angustiantes, distantes, que até àquele lugar chegavam, disfarçados no hálito sufocante que envolvia o caminho.

Eu por ali caminhava, completamente abandonado à minha desgraça. Seguia um trilho desconhecido, debaixo de um Sol, implacável e libidinoso, que lambia a paisagem com as suas mil e uma línguas de um fogo que lançava sobre a Terra, como um castigo, tornando-a seca, tão seca que os meus passos, ainda que leves, trôpegos e inseguros, deixavam uma nuvem de poeira, à minha passagem, como se por ali tivesse cavalgado um tropel de cavalos assustados. O Sol tinha a outra cor da morte. Era vermelho. Diz-se que a morte é negra. No primeiro instante, talvez, depois vem uma luz extasiante, que nos atrai e nos convida a segui-la sem medo. Contudo, a morte é igualmente vermelha, como o sangue que flúi pelas nossas entranhas. O sangue é vida, é morte. Se corre no seu leito venoso é vida. Coagulado no chão, é morte. Aquele era um Sol rubro, que não cumpria o seu destino: não iluminava, incendiava; não aquecia, queimava; não acariciava, açoitava. Dir-se-ia que a estrela maior de todo o Universo mostrava toda a sua revolta contra um mundo que não soube respeitar a sua energia benévola, por isso, agora, agredia esse mundo, como um castigo, pelos descomedimentos de séculos e séculos a fio.

Seguia aquele caminho desconhecido, projectado, talvez, num tempo de que já se perdera o rasto, perseguido por aquela voz que, desde o instante primeiro da minha desdita, me sussurrava: «Vai, segue o caminho do infinito. Nele encontrarás o arbusto-do-lobo, que te abrirá uma porta»!

E isto era tudo o que sabia. Deslocava-me com lentidão, oscilando, desengonçadamente, ossos contra ossos, num desajeito próprio da minha condição invulgar, até porque não era fácil arrastar os pés descarnados, num caminho feito de uma mistura de areia e pedra triturada, rudemente batido por um tempo eterno, imaginava eu, e ressequido pela total ausência de humidade.


Excerto do livro «A HORA DO LOBO» © Josefina Maller (a aguardar publicação)

Origem da imagem:  olhares.aeiou.pt/deserto_do_saara_foto898167.html


quarta-feira, 2 de junho de 2010

DITOSO VELHO!...



Era um casebre velho. Muito velho. Pequeno. Mofoso. Destelhado. De um só compartimento.


Nele habitavam um velho e o seu fiel amigo, um cão, já velho também, chamado Gaspar, e cego de um olho.

O velho sobrevivia das sobras que, todos os dias, coxeando, recolhia pelas portas das casas, acompanhado do seu cão. Dois farrapos de vida caminhando pelas ruas da cidade nova, que cresceu ao redor da colina, onde o casebre velho, do homem velho, se mantinha de pé, graças a um qualquer milagre inexplicável.

Quando chegava a casa, o velho repartia a comida com Gaspar, que agradecia tanta bondade, abanando o rabo e lambendo-lhe as mãos e o rosto. Por vezes, a colheita era minguada. Mas tal não impedia o velho de dividir o pouco que havia para comer, com o seu adorado cão. O seu único amigo. A sua única alegria. O seu único bem. Ditoso velho! (1)

Assim viveu durante alguns anos, pode dizer-se, feliz, porque a amizade e a lealdade de um cão dão alegria a um homem solitário, e para o velho nada no mundo valia mais do que a amizade daquele seu único, fiel e verdadeiro amigo.

Porém, lentamente, a idade foi-lhe consumindo as pernas e as forças, e chegou o tempo em que o velho não mais pôde mendigar pelas ruas da cidade nova. Passava os dias e as noites, deitado na enxerga já gasta, corroído pela fome e pelo frio. Gaspar, a seu lado, lambia-lhe o rosto, num gesto de desvelado carinho, e gania baixinho, condoído pela dor do companheiro.

O Inverno chegara, impiedoso. O velho e o cão partilhavam a mesma tigela que armazenava a água da chuva, que bebiam. Era tudo o que tinham. Certa manhã, o velho olhou para o cão com uns olhos estranhos. E se o matasse e comesse a sua carne? Aplacaria aquela fome que lhe devorava as entranhas e talvez conseguisse algumas forças para poder voltar a mendigar!

Maldito pensamento! Gritou, de súbito, o velho. Como podia engendrar tal execração! Os olhos de Gaspar olhavam-no com tanta piedade, tanto carinho! Que blasfémia! O velho abraçou o cão e chorou amargamente. Prefiro morrer, meu fiel amigo, do que comer a tua carne para poder viver, porque há valores que falam mais alto do que a própria fome. Prefiro morrer livre, do que escravo da necessidade. Sussurrou o velho, cingindo Gaspar com as poucas forças que lhe restavam. E naquele dia, permaneceu imóvel, abraçado ao cão até ao anoitecer.

Quando o Sol se escondeu, por detrás da colina, com ele levou a alma do ditoso velho. Gaspar, apercebendo-se de que o seu amigo o deixara, uivou como nunca tinha uivado. Lambeu-lhe o rosto inerte e frio, numa tentativa de lhe devolver a vida. Olhou-o com um olhar profundamente triste. Agora, tinha o velho, todo para ele. Poderia começar a rasgar-lhe as carnes, e a saboreá-lo. A fome também lhe roía as entranhas. Gaspar tornou a contemplar, condoído, o cadáver do seu velho amigo. Ganiu baixinho, como que chorando. Depois aninhou-se ao seu lado, e ali ficou.

Quanto tempo, não se sabe. O que se sabe, foi o que se viu, um dia, quando vieram demolir o casebre, para ali construírem uma grande superfície: os esqueletos de um velho e de um cão, enlaçados, sobre a enxerga apodrecida, que ambos partilharam, na vida e na morte.

(1) Fortunate senex – Locução latina que se aplica a qualquer ancião que tem uma velhice feliz.

in «OS DIAS DE JOSÉ... e Outras Narrativas» © Josefina Maller (a aguardar publicação)

Origem da imagem: http://www.cki.com.br/Favoritos/videos_e_fotos.htm


quinta-feira, 27 de maio de 2010

TUDO O QUE TENTAVA DIZER ERA VERSO…



Enquanto impetuosamente, o vento açoitava a noite, estranhamente, a flor que eu plantara no meu jardim, nessa manhã, esmorecia…


Isto foi o que ela começou a escrever no seu bloco de notas, sentada à mesa do canto, do Café Nicola, o mais antigo da cidade, um café com história, o café de eleição do poeta Bocage, o qual tudo o que tentava dizer era verso (1).

Lá fora, a tempestade fustigava a praça, e a chuva desenhava formas insólitas na vidraça…

Escrevia ela, no seu bloco de notas, ela, que sempre gostara de dias chuvosos, quando a melancolia se instalava nas coisas e na alma. Então, deixava-se vaguear por mundos imaginados, longínquos, e construía outras realidades. Agora, ali estava ela e não estava, sentada a uma mesa do Nicola.



Inesperadamente, Bocage entrou sacudindo o capote. Cabelo revolto. Ar descurado, de quem não anda bem com a vida. Olhou-a nos olhos, e o estremecimento foi mútuo. Sentou-se Bocage à mesa dela, sem cerimónia, sem esperar aprovação. Nem precisava. Ambos conheciam o poder da atracção.

Por momentos prevaleceu um fugaz silêncio eloquente, aquele que diz tudo sem dizer nada, e que durou uma eternidade. Só depois desse tempo indefinido, vieram as palavras:

Dos teus olhos bastou ver a luz brilhante, para que meu destino ficasse marcado nesse instante…

Ela sorriu-lhe, um sorriso melífluo, e retribuiu-lhe o versejar:

Acolho-te poeta, na minha fantasia, e do teu verso guardarei a utopia…



A utopia. Sim. Era tudo o que lhe restava. Gostaria de ter conhecido o Manuel Maria. Talvez pudesse ter sido a sua musa, inspiradora de versos ainda mais sublimes dos que aqueles que o poeta dedicara a Gertrúria. Sonhos, apenas sonhos! Sonhos inúteis, mas sonhos!

O vento aquietara-se e a chuva deixara de desenhar formas insólitas na vidraça. Uma luminosidade desluzida começava a despertar a letargia no Nicola. No bloco de notas, as palavras que ela escrevera, pensando naquele que tudo o que tentava dizer era verso, jaziam silentes…


(1) Quidquid tentabam dicere versus erat – Verso de Ovídio que revela a sua irresistível inclinação para a poesia.

in «OS DIAS DE JOSÉ... e Outras Narrativas» © Josefina Maller (a aguardar publicação)


sexta-feira, 21 de maio de 2010

PINGO D’ÁGUA...



Sombria vai a noite...


E aquele pingo d’água

ilumina os versos

que a folhagem sussurra

debruçada sobre

o pequeno abismo que a

separa do riacho

de águas mansas

que se afastam,

silenciosas,

para não despertarem

as estrelas...

segunda-feira, 17 de maio de 2010

MADRUGADAS...



Por vezes, a preguiça do Sol cobria a planície de brumas e silêncio. Porém, Rajid, que despertava todas as manhãs com o lamento de um melro, o qual fazia ninho entre os ramos de uma bela acácia, partia para a sua habitual digressão, apesar da penumbra.


Uma brisa delicada embalava as flores e as ervas da planície, ainda meio adormecida, e Rajid trotava com cuidado, não fosse despertá-las.

Porém, quase sempre, aquele silêncio era bruscamente interrompido pelo alvoroço do bater de asas e do cantar de um bando de pássaros azuis que vinha saudar a manhã.

A eles juntava-se o burburinho das águas, a sinfonia da folhagem e o relincho terno de Rajid. O Sol fazia dissipar então as brumas que o envolviam e descobria-se, radiante, enchendo de uma luz radiosa a paisagem.

A Natureza despertava do seu sono nocturno e tudo à sua volta se transformava, como que por magia.

Eram assim as madrugadas de Rajid, o cavalo selvagem.


in «História de um Cavalo Selvagem» © Josefina Maller (a aguardar publicação)

terça-feira, 11 de maio de 2010

ERA ENTÃO O MUNDO UM LUGAR DE DESENCANTO…


Era então o Mundo um lugar de desencanto, macerado pela dor de uma agonia, lenta e irremediável. Devorado por séculos de uma ignorância e uma incúria inconcebíveis. Inaudível, nos seus lamentos mais lancinantes. Um lugar onde o cantar da cotovia soava a melodia fúnebre.

Era o tempo de todos os tempos. Infinito. Imutável. Inexorável...

Até que um dia…

Subitamente, os céus rasgaram-se num esgar de fúria.




As nuvens foram, num ápice, sugadas pela boca imensa de um tufão e, por todo o Planeta, soou um rugido medonho, saído de entranhas, longínquas e desconhecidas, como se alguém estivesse a assassinar o Universo, desferindo-lhe golpes de uma inacreditável crueldade, e o Universo, trespassado pela dor súbita, provocada por essa desordem, não pôde conter o seu grito. Os ventos uivaram com toda a raiva que os vinha sufocando desde os tempos em que a Mãe Natureza começou a sentir os primeiros sintomas de uma doença grave, que veio a demonstrar ser altamente contagiosa e que foi se agravando à medida em que algo a que se chamou progresso ia avançando. Os uivos do vento ecoaram, então, por todo o Universo, como um grito de libertação.

Era então o caos. O caos sublime.

Tudo aconteceu inesperadamente.

As carnes de todos os seres vivos começaram a cair como chuva fétida. Homens e mulheres, velhos e novos foram atacados pelo que se admite ter sido o mais surpreendente tédio do Universo. Fracos e fortes, bons e maus, todos os animais vertebrados e invertebrados, caminhantes e rastejantes sobre a Terra evolaram-se, então, impelidos por uma ventania endoidecida. Toda a vegetação murchou e as águas das fontes, dos rios, dos lagos e dos oceanos secaram, tal o poder flamífero do Sol que, saturado, cingiu o planeta com um deslumbrante manto de fogo. E esse fogo era tudo o que restava do caos.

Veio depois o vazio.

O nada, na sua mais absoluta significância. O nada, mas não as trevas. Era uma luz intensa que fulgurava. Tão ofuscante que causaria pasmo e aquele terror primordial do desconhecido, se alguém ficasse para contemplá-la.

Iniciara-se revolta dos elementos. Ferozes. Saturados de raivas acumuladas, há longos, longos séculos, pelos maus-tratos que lhes foram infligidos. Desprotegido, o Planeta ficou então inteiramente à mercê de um Sol insensível, único elemento dominante no caos em que o Universo se transformou, o qual envolveu a Terra num abraço funesto, ao lançar os seus raios ultravioletas, como flechas envenenadas, sobre todos os povos.

Todavia, pela Terra, deambulava o esqueleto de um homem que, misteriosamente, sobrevivera ao tédio do Universo. Um ser sonâmbulo. Amostra de um caos absoluto. Simulacro de sombra ou vivo-morto, sem condição para repousar, em paz, o corpo descarnado. Por isso, aguardava, expectante, o desfecho desta rebelião dos elementos, e um destino singular e inimaginável, que o aguardava, lá, num lugar secreto, onde a vida fluía como um milagre…


in «A HORA DO LOBO» © de Josefina Maller (a aguardar publicação)

terça-feira, 4 de maio de 2010

A MORTE DO LOBO...



O Lobo, lindo, de pelagem cinzenta e olhar profundo, solitário e triste, cabeça baixa, caminha, cambaleando, pisando a folhagem, na minha direcção.


Os seus olhos tristes, feridos de morte, olham-me, com desespero.

Eu sei, ele sabe, a morte está perto.

De súbito, solta um longo e doloroso uivo, que soou em toda a floresta como uma despedida.

O Lobo estremeceu... Eu estremeci...

Conduzi-o até uma gruta, escondida entre abetos, e ali, no abrigo da folhagem, exalou o último suspiro, nos meus braços, que o abraçaram fortemente...

– Vai, Lobo, vai...

Leva contigo o meu coração despedaçado e as minhas lágrimas...

A tua vida foi uma constante luta pela sobrevivência, no mundo onde manda o homem. Que mal fizeste tu para que ele te assassinasse?

Mal nenhum, eu sei.

Tu partiste, Lobo. Para onde?...

Como posso saber?...

Só sei que nesta floresta, na nossa floresta, permanecerá a tua honestidade de Lobo e a nossa amizade, em cada madrugada que vier...

Para sempre, Lobo...

Para sempre...

 
(Origem da imagem: Internet)

domingo, 2 de maio de 2010

NEM SEMPRE OS LÍRIOS FLORESCEM...




Era uma vida como todas as vidas.
Ou não seria uma vida como todas as vidas?



Nem todas possuem a tranquilidade das árvores.

Não!

Era uma vida única. A serenidade habitava no seu semblante. Todos os seus gestos eram harmoniosos.

Caminhava como se flutuasse. A sua voz, afectuosa. O seu olhar, melífluo. E a sua sabedoria, infinita. Vivia numa cabana de madeira, construída no meio de uma pequena floresta, não muito afastada da povoação.

Ela procurava-o frequentemente. A tranquilidade daquela vida apaziguava os demónios que a atormentavam. Sempre foi recebida no pequeno jardim, que rodeava a cabana. Nunca ninguém ousou invadir a intimidade daquele lugar. Sentavam-se, cá fora, nuns bancos de pedra, e era debaixo da folhagem de um belo carvalho que ela sorvia as suas palavras sábias, com a avidez dos sequiosos. Quando chovia, ficavam debaixo do telheiro, sentados em cadeiras de verga, a olhar a chuva, num silêncio que tudo dizia.

Ninguém sabia o nome dele. Era conhecido simplesmente como o Velho Sábio da Floresta. Barbas e cabelos brancos e longos, ondulavam ao sabor do sopro do vento. Vestia longas túnicas, à moda dos velhos orientais. Numa das mãos trazia sempre uma pequena pedra, em forma de coração, de uma brancura transparente. Era a pedra da Sabedoria. Se a apertares com força, entre as tuas mãos, sentirás a sua energia benéfica. Dizia-lhe. E ela acreditava.



Um dia procurou-o, por se sentir perdida. Disse-lhe: Lanço à terra sementes que nunca florescem. Porquê?  – Referia-se às iniciativas que tomava para mudar o rumo à sua vida.

Na verdade, nem sempre os lírios florescem (1)... Vai, medita nestas palavras, e regressa apenas quando tiveres compreendido o significado delas… – Disse-lhe, então, o velho sábio.

Naquele dia, ela deixou-o, desassossegada. Nem sempre os lírios florescem… Que significado teriam aquelas palavras?

De regresso a casa, teve de atravessar um campo. Nesse campo, entre muitas outras pequenas flores, havia lírios silvestres. Contemplou-os longamente. Os lírios…Veio-lhe à lembrança o que disse Mateus: Olhai os lírios dos campos, não trabalham, nem fiam; e vede como crescem; nem mesmo Salomão, com toda a sua glória, se vestiu como um deles.

Fez-se então uma luz dentro dela.
Não sabia se havia compreendido o verdadeiro sentido das palavras do velho sábio, mas decidiu regressar à floresta, nesse mesmo dia, e disse-lhe: Velho, acabo de aprender com os lírios do campo que rodeia este lugar que nem sempre é possível cultivar um sonho…

O velho sábio apertou as mãos dela nas dele, e sorriu…

(1) Nec semper lilia florent – Nem sempre as coisas correm à nossa maneira (locução latina).


in «OS DIAS DE JOSÉ... e Outras Narrativas», © Josefina Maller (a aguardar publicação)

(Origem da imagem: Internet)

terça-feira, 27 de abril de 2010

ANTES DO MAR, AS ÁGUAS…



Um dia, ela desejou fazer uma viagem.


Disseram-lhe que seguir o caminho da Poesia era caminhar em direcção ao Paraíso. Durante vários dias, meditou sobre esse itinerário.

Pouco sabia desse trilho e desse Paraíso. Perguntou então onde podia encontrar o caminho da Poesia. Disseram-lhe que procurasse o bosque dos salgueiros debruçados sobre o rio, e seguisse um atalho juncado de folhas avermelhadas. Nele, encontraria gravado em cada árvore um pequeno poema. Devia segui-lo, ao longo da margem, em direcção à montanha. O Paraíso estaria onde os seus sentidos o vislumbrassem. Porém, quando se deparasse com ele, jamais poderia revelar o que os seus olhos vissem.

Pareceu-lhe aliciante esta promessa de idílio e de mistério.

Partiu então de madrugada, ainda o Sol deambulava pelo outro lado do mundo. Misteriosa, a bruma cingia-a delicadamente. Os seus passos rasgavam o silêncio daquela manhã. Seguia o seu instinto que dizia: Vem, vem por aqui… Ouvia o canto de um pássaro que parecia acompanhá-la, invisível, como um anjo.

Em breve estaria diante do bosque dos salgueiros debruçados sobre o rio. As águas iam tranquilas, e as árvores, rendidas ao mistério dessa mansidão. As folhas avermelhadas do Outono juncavam o caminho que ela devia seguir. Numa pedra, logo à entrada, liam-se estas palavras: Neste bosque venera-se Matsuo Bashô, e com ele a Poesia.

Matsuo Bashô. O poeta japonês.


Compreendia agora o que lhe disseram quanto ao caminhar em direcção ao Paraíso, seguindo o caminho da Poesia.

Na primeira árvore, o primeiro poema:

«Depressa se vai a Primavera
choram os pássaros e há lágrimas
nos olhos dos peixes»

Assim teve início esta viagem. Em cada árvore um poema de Bashô. Palavras simples, frases breves, conceitos profundos. Sim, na verdade, ela encontrava-se no Paraíso.

«Quietude:
as cigarras escutam
o canto das rochas»

Deixou-se então conduzir pelas palavras. Seguiu o curso do rio. Leu todos os poemas de Bashô, gravados nos salgueiros debruçados sobre as águas. O trilho terminava na montanha, junto à nascente do rio. Contudo, o que os seus olhos viram, jamais poderia ser revelado.

Como retribuiria ela a Bashô esta viagem pelo interior do Paraíso dele?

Decidiu então gravar na pedra, cravada na falda da montanha, um tributo a todos os poetas, ao jeito de Bashô:

Antes do mar, as águas (1)
antes das águas, o sopro
antes do sopro, o ser dos seres…


in «Os Dias de José... - E Outras Narrativas» © Josefina Maller (a aguardar publicação)

 (1) Ante mare undae – A causa precede o efeito, o todo provém da reunião das partes (locução latina)

terça-feira, 20 de abril de 2010

SÚPLICA...



Eis-me prostrada sobre a terra,

ainda húmida do orvalho da noite.

Sinto-lhe o cheiro forte e doce,

este cheiro que me conduz

a um tempo que desconheço,

a lugares nunca visitados,

a experiências nunca vividas,

a memórias imemoráveis,

a um sino que toca na escuridão,

a pedras soltas,

ruínas,

heras cobrindo muros...

Não sei onde estou,

não sei o que sou,

não sei...

O que queres de mim, terra,

que me chamas com o teu odor, forte e doce...?

Por que me arrastas

para estas desconhecidas lonjuras? ...

Deixa-me voltar

para o meu universo

feito de silêncios e sons,

de luas e sóis,

e desta flor que

desabrocha todas as manhãs,

no meu olhar...

domingo, 18 de abril de 2010

O CISNE



(das lendas: Cisne. H. 13 v.)


O cisne dobrou o flexível pescoço para a água e viu-se reflectido.

Então, de repente, compreendeu a razão da sua fraqueza e daquele frio que lhe atazanava o corpo fazendo-o tremer como de Inverno: e sem qualquer dúvida soube que a sua hora havia soado e que precisava de se preparar para a morte.

As suas penas eram ainda brancas como no seu primeiro dia de vida. As estações e os anos tinham-se passado sobre ele sem lhe manchar as vestes imaculadas; podia pois desaparecer, concluir em beleza a sua existência.

Erguendo o belo colo, dirigiu-se lenta e solenemente para debaixo de um salgueiro, onde costumava repousar durante o calor. Era quase noite. O ocaso estava agora tingido de púrpura e a água do lago tinha o tom violeta.

E no grande silêncio que havia em tudo, o cisne começou a cantar.

Até aí, nunca encontrara acentos tão plenos de amor pela Natureza, pela beleza do céu, da água e da terra. O seu canto dulcíssimo espalhava-se no ar, velado de nostalgia, até que, pouco a pouco, se foi extinguindo conjuntamente com a derradeira luz do horizonte.

– É o cisne – disseram comovidos os peixes, os pássaros, todos os animais do prado e do bosque – é o cisne que morre.


in «Fábulas e Lendas – contadas e escritas por Leonardo da Vinci no seu tempo» - Edição da Editorial Futura/1974, com tradução de Virgílio Martinho

(Origem da imagem: Internet)

terça-feira, 13 de abril de 2010

QUANDO O MUNDO NÃO CHEGA PARA ACOLHER A MINHA ERRÂNCIA... NA FÉ DE UM MONGE ME ABRIGO...



O que mais me seduz

em ti

é o sorriso que sempre

encontro nos teus lábios

apesar de saber dos teus

medos

dos teus desencantos

e da solidão a que te

impões quando

as sombras caem

sobre a tua cela de monge

e no silêncio da noite

apagas o teu desejo

de liberdade

numa oração...



O que mais me fascina

em ti

é a alegria com que

vives a tua vida

enclausurada entre

as velhas pedras de

um mosteiro

que te dá abrigo e

onde encontras

a tranquilidade

com que embalas

a tua alma

e a quietude com que

adormeces

os teus sonhos...


O que mais me cativa

em ti

é essa arte que buscas

entre as coisas de Deus

e a devolves, depois,

aos mortais como

relíquias eternas

para serem admiradas

veneradas

através de formas divinas

anjos e arcanjos

santos e santas

flores de um jardim

imaginário

de um paraíso só teu...


O que mais me encanta

em ti

é a fé que me transmites

com o teu modo de ser

e de viver os mistérios de

Deus

de quem por vezes

me afasto

e me perco

para encontrá-lo de novo

em ti

no teu sorriso

na tua alegria

na tua arte

na tua imensa fé...

sexta-feira, 9 de abril de 2010

CÂNTICO FINAL...



Chegara, finalmente aquele 17 de Outubro. O ano era o de 2009. Fazia uma daquelas magníficas tardes de Outono, em que o Sol dourava a folhagem, amarelecida, dos choupos, no jardim.


O silêncio era o de águas que corriam ali perto.

Eleutéria acabara de morrer.

Ouvi estas palavras serenamente. Afinal, Eleutéria tinha 100 anos. Murchara como uma uva passa. A sua doença limitava-se a ser o cansaço da vida. Quando se perde a força da juventude, viver torna-se um fardo. Dizia Eleutéria, frequentemente.

E tudo aconteceu como previra.

Tantas vezes passara pelo 17 de Outubro! Esse dia, era o dia do seu pressentimento. Dizia. Comemorava-o, como o dia da morte que havia de vir, tal como celebrava o dia do seu aniversário, a 27 de Maio. Nascera em 1909.

Um século de uma vida vivida como se estivesse permanentemente em cima de um palco: representando. Sim, representando várias Eleutérias. Sempre se sentira no lugar errado, rodeada das pessoas erradas, e fazendo as coisas erradas. Qual das que representava no palco da vida seria a verdadeira? Nem ela própria sabia.

Nunca conseguira dominar o seu destino. Tentou ser escritora. As palavras eram o seu sonho maior. Mas não a deixaram. Outros valores menores sempre se levantaram diante da sua obra (quase toda de intervenção, numa época em que a literatura de água com açúcar estava em voga). Talvez a indiferença que os editores votavam ao seu talento, lhe tivesse corroído a alma, e ela deixara-se abater como um tordo.

Antes de se sentar na sua cadeira de baloiço, de onde não sairia mais, a não ser para ir deitar-se, com ajuda, queimou todos os seus papéis, todos os seus manuscritos, todas as suas recordações, fotografias, para que não ficasse rasto do que foi. E até ela foi cremada, e as cinzas lançadas sobre o oceano, para que nada restasse da sua existência na Terra.

De Eleutéria resta apenas a recordação de uma mulher que teve o sonho de ser escritora e um sistema editorial caduco não permitiu.

E eu, que a conheci e cheguei a ler alguns dos seus escritos, posso afirmar que o mundo perdeu quem poderia ter sido uma das maiores autoras do século.

Como eu compreendia o seu desassossego!...

...

Voai cinzas de Eleutéria! Acompanhai a essência que se foi. Juntai-vos algures num paraíso que houver longe, para que Eleutéria renasça!

(Origem da imagem: Internet)