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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

DEPOIS DAS NUVENS, FEBO…



As nuvens, espessas e apressadas, chegam e atravessam o ar, carregado de escuridão e energias, ocultando o Sol, no seu Olimpo.


Assobia o vento, colérico, entre o casario. Brilhos fugazes rasgam os céus e os trovões ecoam, aterradores. As águas, cativas, saturadas do seu destino, lançam-se do espaço, transformadas em cataratas de chuva que, num ápice, das ruas fazem rios.

Nos jardins, as árvores dançam a dança do vento passageiro, que vem e não fica. A folhagem, humilde e insegura, desgarra-se dos troncos e cai, juntando-se às pequenas e delicadas flores que, esmagadas pela força da chuva, se desfazem num húmus, fecundo e perfumado. Um cheiro a terra húmida levanta-se do chão e entranha-se na cidade.

Inicia-se a batalha dos deuses contra os titãs. Uns e outros poderosos. E o mais poderoso de todos, o Grande Espírito, desce dos céus para reinar sobre a Terra, numa fugaz tempestade, porque é preciso lembrar aos homens de que há uma Natureza mais forte do que o frágil poder deles.

Por detrás das vidraças, olhos assombrados espreitam o desconcerto da tormenta que se abate sobre a cidade.

O dia faz-se noite. Nas ruas desertas, correm águas revoltas e barrentas. O vento, que é invisível, mostra-se agora, distintamente, no torvelinho que desce a rua. Rasgando os céus, cintilam os lumes provocados pela colisão das nuvens que, espessas e apressadas, continuam a atravessar o ar, e troadas tenebrosas dilaceram a inquietude das almas, nelas se instalando um medo indizível.

Todavia, não temeria sempre o homem tudo o que desconhece ou não pode controlar?

...

Lentamente, quase imperceptivelmente, o Grande Espírito abandona a Terra, deixando os homens com a fraqueza deles.

Deuses e titãs regressam às infinitudes do Universo.
As águas esgotam-se, na sua nascente.
As nuvens, espessas e apressadas partem, levando-as o vento, passageiro, que veio e não ficou.
A cidade, ainda molhada, abre-se novamente para o dia.

Depois das nuvens, Febo…(1) particularmente fulgurante...

(1) Post nubila Phoebus – Depois das nuvens, Febo (o Sol); depois da tempestade a bonança (locução latina).

in «Os Dias de José... e outras Narrativas» (a aguardar publicação)

Texto e foto © Josefina Maller

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

MELANCOLICAMENTE AS MIMOSAS FLORIRAM...



Naquele domingo,

a chuva molhava

a paisagem...



Melancolicamente,

as mimosas floriram

colorindo a

tempestade

medonha

que fustigava

os seus ramos...


E eu,

enternecida,

deixei-me embalar

pelo vento

salpicado de

pequeninas flores

amarelas...


© Josefina Maller



segunda-feira, 11 de outubro de 2010

NO CORAÇÃO DAS COISAS…



Impõe-se saber que homem é este que, conduzido pelo instinto, seguiu um caminho desconhecido, em busca de algo que não podia sequer imaginar, e que acabou por envolvê-lo numa intrigante aventura, talvez real ou provavelmente fruto de uma alucinação, provocada por uma hipotética revolta dos elementos, engendrada no seu subconsciente.

A narrativa que se segue é sobre a experiência e o testemunho daquele que sobreviveu ao tédio do Universo; e diz, igualmente, do seu pensamento e dos seus discursos impróprios, seguidos de caos.

Esta é, enfim, a gesta de Oskar Kapriolo.

Atrevo-me a contá-la, ainda que contra a vontade do próprio Oskar, receoso de que a sua história possa ser interpretada como mais uma daquelas ficções inverosímeis, que se forjam para entreter as mentes e afastá-las do essencial, do urgente, daquilo que na realidade interessa, ou seja, da tão ansiada reconstrução do mundo, para que possamos regressar ao paraíso primordial. No entanto, estou disposta a correr esse risco, até porque num mundo onde todas as coisas acontecem não por acaso, viajar pelo interior, ainda que de uma alucinação, afigura-se-me uma façanha verdadeiramente fascinante. E, além de me deleitar com uma boa aventura, agrada-me decifrar os enigmas que, eventualmente, essa aventura possa proporcionar-me.

Por outro lado, conheço Oskar há longo tempo. Desde o tempo em que ambos trabalhávamos no mesmo jornal. Segui-o pelo mundo, profissionalmente (é imperioso dizer), registando em imagens o que ele ia construindo com palavras. Eu era a “sua” fotógrafa, mas também a sua confidente e cúmplice, nas horas difíceis, quando as coisas aviltantes de um mundo, em franca derrapagem, o esmagavam a ele, tanto quanto a mim.

Mais tarde, já numa outra fase da sua vida profissional, quando se tornou um escritor famoso, Oskar pediu-me para que continuasse a acompanhá-lo nas suas viagens, com a finalidade de registar imagens e gravar os seus discursos, as suas intervenções, os improvisos que ia proferindo, durante as inúmeras digressões que realizou por todos os continentes. Por isso, sei do seu pensamento, dos seus ideais, de como subitamente pode fazer jorrar palavras que parecem não ter qualquer propósito e, no entanto, se tivermos a capacidade de penetrar nos interstícios dessas palavras, que Oskar deixa suspensas entre reticências, pontos de interrogação e de exclamação, ele lá está, o desígnio de tudo, oculto entre duas linhas, ou discretamente grifado numa qualquer silabazinha, humilde e escorreita, que, ninguém como ele, sabe esboçar.

Um dia, na cidade do Cairo, enquanto observávamos, horrorizados, o corpo desfeito de uma bombista-suicida, à porta do hotel onde estávamos hospedados, e que, só por milagre, também não nos atirou para os braços de Hades, Oskar murmurou, ao jeito de um poeta, com um ar circunspecto, ajustado à ocasião, olhos postos no longe, e uma voz vagarosa e afectiva, que era a dele:

— Sabes, Norah, no coração das coisas há sempre a esperança de vermos brotar a flor da rosa, ainda que essa flor se pareça com o vento que passa veloz, deixando-nos apenas um rasto de perfume agreste. No entanto, se por alguma casualidade, a esperança se desvanecer, o perfume agreste do vento permanecerá na flor, por toda a eternidade. E neste pequeno detalhe é que está o grande mistério que faz mover o mundo…

Ainda hoje procuro o sentido desta reflexão enigmática, proferida diante dos despojos ensanguentados daquela que talvez tivesse sido uma bela mulher, embora animada por um espírito obscuro.

No entanto, não foi para encontrar o sentido dessas palavras que me propus a escrever este livro, até porque a escrita de um livro não se justifica. Escreve-se e ponto final. Contudo, poder-se-á perguntar: porquê a gesta de Oskar Kapriolo? A esta pergunta o próprio Oskar responderá, mais adiante.

Quanto a mim, direi que talvez seja pelo perfume agreste que permanece na flor da rosa, que Oskar encontra no coração das coisas, e eu sinto no ar que respiro, e que tanto me fascina, facto que, por si só, possivelmente, bastasse para justificar o livro.

Todavia, posso adiantar que o motivo não será propriamente este. Por agora, tentarei contar a história de Oskar, palavra a palavra, parágrafo a parágrafo, página a página, até ao desfecho do enredo que, inesperadamente, o envolveu como a teia da aranha envolve a mosca. Para tal, socorri-me do material que tinha à minha disposição: as gravações das conferências proferidas por Oskar e dos seus discursos improvisados, considerados impróprios, pelos seus opositores mais obstinados; conversas e confidências por ele autorizadas; páginas das suas Notas de Viagem e do seu Diário que, devo confessar, muito a custo, me foi consentido consultar; as minhas próprias vivências com o escritor e, evidentemente, os Andamentos de um percurso, ou talvez os delírios de Oskar, narrados pelo próprio, no jardim da sua amada Matilde.

Ou não seriam delírios?...

in «A HORA DO LOBO» © Josefina Maller (a aguardar publicação)


Web site da imagem: internacionalizzando.blogspot.com