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sábado, 26 de junho de 2010

A ORAÇÃO DO MACACO…



No primeiro dia, vieram uns e outros de todos os lados.

No segundo dia, vieram uns.
No terceiro dia, vieram outros.
No quarto dia, não veio ninguém.

No meio da praça vazia, tão vazia, que nem um cão se via, o Presidente, empoleirado no seu palanque dourado, não tinha a quem dirigir a palavra. Intrigou-se então o homem. Porquê, se no primeiro dia vieram uns e outros, de todos os lados, ouvir a conferência do cientista sobre o aquecimento global? Se bem que no segundo dia, sim, só vieram uns, assistir à dissertação do escritor sobre o Acordo Ortográfico; e, no terceiro, outros vieram para o sermão do padre acerca das bem-aventuranças. Mas no quarto dia, não vir ninguém ouvir o discurso do Presidente sobre o estado da governação? Ele que já era Presidente há tantos anos, e sabia das coisas! Era muito estranho. Ali havia gato! Um grande gato!

O Presidente ainda esperou algumas horas, sentado numa das cadeiras que havia no palanque. Talvez aparecesse alguém para o esclarecer daquele grande mistério. Nem um cão? Nem um pássaro? Ninguém para o ouvir? Estranho. Muito estranho.

O tempo passou, até que veio a noite. Entretanto, o Presidente adormeceu, sentado na cadeira. Parecia um falecido, à luz da Lua. O seu rosto estava branco. Os braços descaídos ao longo do repolhudo corpo. As pernas esticadas.

Foi assim que todos, vindos de todos os lados, o encontraram ao quinto dia. Um rumorejo percorria a praça, agora cheia de todos. Falavam por entre dentes. Perguntavam-se se o Presidente estaria morto. O que lhe teria acontecido? Ninguém se atrevia a falar alto. Ninguém se atrevia a aproximar-se. Ninguém se atrevia a coisa nenhuma. Limitavam-se a observar e a cochichar. Até que chegou Angélica, mais conhecida como a “casta Angélica”, que, muito ansiosa, foi abrindo caminho até ao palanque, por entre a multidão, estupefacta.

A “casta Angélica”, plantada nos seus sapatos altos, vermelhos, a condizer com um vestido florido, que deixava antever o que não era conveniente ver-se, subiu, com muita elegância, as escadinhas que conduziam ao palco, onde o Presidente continuava sentado na cadeira, como um falecido, e, delicadamente, tocou-lhe no ombro. O Presidente acordou estremunhado. Mais do que estremunhado, estremunhadíssimo, com uma expressão de terror desenhada no rosto, demasiado branco. Dir-se-ia estar diante de um fantasma.

Um e outro puseram-se então a dizer a oração do macaco (1), ou seja, a falar por entre dentes, para que ninguém ouvisse o que diziam. O Presidente, notava-se, estava apavorado. As palavras que trocavam, ninguém as ouvia, apesar do profundo silêncio que se fazia na praça. Contudo, podia deduzir-se o teor da conversa, pelas expressões comprometidas de ambos.

De súbito, a “casta Angélica” retirou-se do palanque com um sorriso disfarçado nos lábios pintados, a condizer com os sapatos vermelhos, e passou pelo povo, como cão por vinha vindimada.

Entretanto, o Presidente levantou-se, como se nada tivesse acontecido, ajeitou os cabelos e a gravata, apertou os botões do casaco, abeirou-se do microfone e quando ia a começar a falar houve uma debandada geral: todos os que, no quinto dia, vieram de todos os lados para ver o Presidente, que todos comentavam ter falecido, sentado na cadeira do seu palanque, retiraram-se, apressadamente, da praça.

Pasmado, o Presidente ficou novamente sozinho, em cima do palanque, na praça vazia, sem ter a quem dirigir o seu discurso sobre o estado da governação.

Nem, um cão! Nem um pássaro. Ninguém.


in «OS DIAS DE JOSÉe Outras Narrativas...» © Josefina Maller (a aguardar publicação)


(1) Dire l’orazione della bertuccia – Falar por entre dentes (locução latina).

Origem da imagem: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgzLk4LQ_PS9ocIR9wzgP1lWaTn2wS4sTx2cj8kAcSdKhxfZ77NtGoxWli9li6lom95rzhJ5iiyYRebv4dNwA7YOZsY84k8rAGAYzRxSrdUStHdOC7uKjEUb53ATHS6113qtWoKcX2FipE/s1600/macaco_rindo.jpg


sexta-feira, 18 de junho de 2010

JOSÉ SARAMAGO PARTIU...



José Saramago morreu?


Era bom carácter? Mau carácter? Era ateu? Incomodava? Era comunista? Polémico?
O escritor morreria de verdade?

A Literatura Portuguesa perdeu o homem, mas ficou com a sua obra. Uma obra maior. Polémica? Certamente. Se não fosse polémica não seria maior. Lugares comuns não entram para a História, nem para a eternidade.

Saramago morreu? Não!

No mundo ficaram as suas palavras imortais, que o tornam imortal.

Saramago não morreu.

Partiu para uma outra dimensão da sua existência, deixando-nos a lembrança de um homem que nunca esteve bem com o mundo nem com uma humanidade tão desumana...


(Origem da imagem)
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjHwsCKtP_IXfAkVsbOGiOfzBgkidf5x5OatjCHeKxM5Zaf19Q3FGECCNkjarcC2eiV1HldLAwktGOh88V0NpGcFt7ValhOEK9_mCriSDHeyOvzLr5JJiJedgV5gghFcqeJUWv81GCHmeg/s400/jose_saramago01.jpg

CANÇÃO DO VENTO E DA MINHA VIDA



(Um tributo a Manuel Bandeira, grande poeta brasileiro)



O vento varria as folhas,

O vento varria os frutos,

O vento varria as flores...

E a minha vida ficava

Cada vez mais cheia

De frutos, de flores, de folhas.



O vento varria as luzes,

O vento varria as músicas,

O vento varria os aromas...

E a minha vida ficava

Cada vez mais cheia

De aromas, de estrelas,

De cânticos.



O vento varria os meses

E varria os teus sorrisos...

O vento varria tudo!

E a minha vida ficava

Cada vez mais cheia

De tudo.

Manuel Bandeira

(Origem da imagem: http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/literatura/manuel_bandeira/imagens/retratoManuelBandeira.jpg

quarta-feira, 9 de junho de 2010

PRIMEIRO ANDAMENTO...


(OU O DELÍRIO PRIMEIRO DE OSKAR)

Maquinalmente, obedeci àquela ordem, por não ter outra alternativa, ou talvez tivesse simplesmente seguido o instinto que sempre norteou os passos da minha vida, impelindo-me para rumos, por vezes, impensáveis, diria mesmo, surrealistas, por onde me embrenhava, procurando alcançar o indefinível da existência, que sempre tanto me fascinou…


«Vai, segue o caminho do infinito. Nele encontrarás o arbusto-do-lobo, que te abrirá uma porta!» — aquela voz, profunda e poderosa, misteriosa e longínqua, ainda ecoava em mim.

Tudo começou à hora em que os pássaros regressam às árvores e adormecem. Um rugido terrível, oriundo das mais profundas e sombrias trevas, rasgou os meus ouvidos e atordoou todos os meus outros sentidos. Depois, aquela força incorpórea arrastou-me como o vento arrasta as folhas secas das árvores, no Outono, para aquele lugar longe e estranho, selvagem e ermo, onde havia um caminho traçado numa paisagem agreste, de onde a vida se ausentara, e apenas penhascos gigantescos, negros e sinistros, esguios como dedos acusadores, apontados para o alto, habitavam.

O caminho era arenoso. Hostil. Interminável. Medonho na sua nudez. De horizontes inatingíveis e indefinidos. E o vastíssimo deserto, que eram as suas margens, esmagava-me e causava-me uma sensação de subalternidade, como se eu não passasse de um minúsculo verme a rastejar por aquele chão poeirento, aos pés de gigantes implacáveis.

O peso daquele deserto doía-me como se carregasse sobre os ombros todos os grãos de areia de que era feito. Seria o mais árido de todos os desertos, cujas geografias, moldadas, talvez, há milhões de anos, por mãos hábeis e invisíveis, guardavam segredos que poderiam ser desvendados por quem se atrevesse a enfrentá-lo de corpo inteiro. Mas não certamente por mim, não nas minhas circunstâncias: um homem caído em desgraça. Eu, que conhecia quase todo o mundo habitado pelos homens, não sabia de um lugar assim. Ocorreu-me, então, que aqueles ventos enraivecidos que, naquela tarde, varreram a Terra, tivessem, talvez, me arremessado a um outro planeta, deserto e desconhecido, já destruído por outros seres tão desprovidos de bom senso como os povos terrestres.

Provavelmente, aquele deserto já fora um lugar verde, coberto de ciprestes, que vivem eternidades, e de pequenos arbustos, plantas também eternas, que deviam torná-lo apetecível à vida, ainda que a uma vida subterrânea, nocturna, como é próprio das areias. No entanto, à época desta minha desventura, aquele era um verdadeiro lugar de morte, pior ainda, um lugar de uma solidão indizível, daquelas que nos condena a rastejar como vermes, de tanto que nos esmaga. O silêncio cingia-o, como a cobra abraça a sua presa, e era algo extraordinário, rasgado por uns estranhos rumores, que se assemelhavam a gemidos angustiantes, distantes, que até àquele lugar chegavam, disfarçados no hálito sufocante que envolvia o caminho.

Eu por ali caminhava, completamente abandonado à minha desgraça. Seguia um trilho desconhecido, debaixo de um Sol, implacável e libidinoso, que lambia a paisagem com as suas mil e uma línguas de um fogo que lançava sobre a Terra, como um castigo, tornando-a seca, tão seca que os meus passos, ainda que leves, trôpegos e inseguros, deixavam uma nuvem de poeira, à minha passagem, como se por ali tivesse cavalgado um tropel de cavalos assustados. O Sol tinha a outra cor da morte. Era vermelho. Diz-se que a morte é negra. No primeiro instante, talvez, depois vem uma luz extasiante, que nos atrai e nos convida a segui-la sem medo. Contudo, a morte é igualmente vermelha, como o sangue que flúi pelas nossas entranhas. O sangue é vida, é morte. Se corre no seu leito venoso é vida. Coagulado no chão, é morte. Aquele era um Sol rubro, que não cumpria o seu destino: não iluminava, incendiava; não aquecia, queimava; não acariciava, açoitava. Dir-se-ia que a estrela maior de todo o Universo mostrava toda a sua revolta contra um mundo que não soube respeitar a sua energia benévola, por isso, agora, agredia esse mundo, como um castigo, pelos descomedimentos de séculos e séculos a fio.

Seguia aquele caminho desconhecido, projectado, talvez, num tempo de que já se perdera o rasto, perseguido por aquela voz que, desde o instante primeiro da minha desdita, me sussurrava: «Vai, segue o caminho do infinito. Nele encontrarás o arbusto-do-lobo, que te abrirá uma porta»!

E isto era tudo o que sabia. Deslocava-me com lentidão, oscilando, desengonçadamente, ossos contra ossos, num desajeito próprio da minha condição invulgar, até porque não era fácil arrastar os pés descarnados, num caminho feito de uma mistura de areia e pedra triturada, rudemente batido por um tempo eterno, imaginava eu, e ressequido pela total ausência de humidade.


Excerto do livro «A HORA DO LOBO» © Josefina Maller (a aguardar publicação)

Origem da imagem:  olhares.aeiou.pt/deserto_do_saara_foto898167.html


quarta-feira, 2 de junho de 2010

DITOSO VELHO!...



Era um casebre velho. Muito velho. Pequeno. Mofoso. Destelhado. De um só compartimento.


Nele habitavam um velho e o seu fiel amigo, um cão, já velho também, chamado Gaspar, e cego de um olho.

O velho sobrevivia das sobras que, todos os dias, coxeando, recolhia pelas portas das casas, acompanhado do seu cão. Dois farrapos de vida caminhando pelas ruas da cidade nova, que cresceu ao redor da colina, onde o casebre velho, do homem velho, se mantinha de pé, graças a um qualquer milagre inexplicável.

Quando chegava a casa, o velho repartia a comida com Gaspar, que agradecia tanta bondade, abanando o rabo e lambendo-lhe as mãos e o rosto. Por vezes, a colheita era minguada. Mas tal não impedia o velho de dividir o pouco que havia para comer, com o seu adorado cão. O seu único amigo. A sua única alegria. O seu único bem. Ditoso velho! (1)

Assim viveu durante alguns anos, pode dizer-se, feliz, porque a amizade e a lealdade de um cão dão alegria a um homem solitário, e para o velho nada no mundo valia mais do que a amizade daquele seu único, fiel e verdadeiro amigo.

Porém, lentamente, a idade foi-lhe consumindo as pernas e as forças, e chegou o tempo em que o velho não mais pôde mendigar pelas ruas da cidade nova. Passava os dias e as noites, deitado na enxerga já gasta, corroído pela fome e pelo frio. Gaspar, a seu lado, lambia-lhe o rosto, num gesto de desvelado carinho, e gania baixinho, condoído pela dor do companheiro.

O Inverno chegara, impiedoso. O velho e o cão partilhavam a mesma tigela que armazenava a água da chuva, que bebiam. Era tudo o que tinham. Certa manhã, o velho olhou para o cão com uns olhos estranhos. E se o matasse e comesse a sua carne? Aplacaria aquela fome que lhe devorava as entranhas e talvez conseguisse algumas forças para poder voltar a mendigar!

Maldito pensamento! Gritou, de súbito, o velho. Como podia engendrar tal execração! Os olhos de Gaspar olhavam-no com tanta piedade, tanto carinho! Que blasfémia! O velho abraçou o cão e chorou amargamente. Prefiro morrer, meu fiel amigo, do que comer a tua carne para poder viver, porque há valores que falam mais alto do que a própria fome. Prefiro morrer livre, do que escravo da necessidade. Sussurrou o velho, cingindo Gaspar com as poucas forças que lhe restavam. E naquele dia, permaneceu imóvel, abraçado ao cão até ao anoitecer.

Quando o Sol se escondeu, por detrás da colina, com ele levou a alma do ditoso velho. Gaspar, apercebendo-se de que o seu amigo o deixara, uivou como nunca tinha uivado. Lambeu-lhe o rosto inerte e frio, numa tentativa de lhe devolver a vida. Olhou-o com um olhar profundamente triste. Agora, tinha o velho, todo para ele. Poderia começar a rasgar-lhe as carnes, e a saboreá-lo. A fome também lhe roía as entranhas. Gaspar tornou a contemplar, condoído, o cadáver do seu velho amigo. Ganiu baixinho, como que chorando. Depois aninhou-se ao seu lado, e ali ficou.

Quanto tempo, não se sabe. O que se sabe, foi o que se viu, um dia, quando vieram demolir o casebre, para ali construírem uma grande superfície: os esqueletos de um velho e de um cão, enlaçados, sobre a enxerga apodrecida, que ambos partilharam, na vida e na morte.

(1) Fortunate senex – Locução latina que se aplica a qualquer ancião que tem uma velhice feliz.

in «OS DIAS DE JOSÉ... e Outras Narrativas» © Josefina Maller (a aguardar publicação)

Origem da imagem: http://www.cki.com.br/Favoritos/videos_e_fotos.htm